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Relações entre os países africanos de língua portuguesa e o Brasil na formação das literaturas nacionais

RELAÇÕES ENTRE OS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA E O BRASIL NA FORMAÇÃO DAS LITERATURAS NACIONAIS

THE FORMATION OF AFRICAN LITERATURE THE COUNTRIES COLONIZED BY PORTUGAL AND BRAZILIAN LITERATURE

Drª Giselle Larizzatti Agazzi

Centro Universitário da FEI

giselleagazzi@terra.com.br

RESUMO

O artigo aponta para questões relativas à formação das literaturas africanas de língua portuguesa e o papel do Brasil nesse processo. Como resgatar e construir um olhar para o que é “próprio da terra”? Como engendrar a um só tempo uma literatura nacional e crítica em um contexto de opressão social, de guerras nacionais? As literaturas de língua portuguesa do Brasil e dos países africanos são distintas, mas se aproximaram e muito, projetando inclusive problemas comuns.

Palavras-chave: Literatura dos Países Africanos de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Formação da Literatura

ABSTRACT

Brazilian literature directly influenced the formation of African literature of the countries colonized by Portugal. The article describes the development of African literature in Portuguese and Brazil’s role in this process. The literatures of the Portuguese-speaking Brazil and African countries are different, but they approached, including designing common problems.

Key-words: African literature of Lusophone Countries, Brazilian Literature, Formation of Literature

Para começo de conversa

O processo de independência nas colônias africanas se inicia em meados dos anos de 1950 e se estende em alguns países por décadas. Moçambique e Angola, por exemplo, passaram mais de vinte anos em guerra, cujo fim, respectivamente, em 1975 e 1976, não significou o início de tempos de paz.
Ao contrário do que se poderia esperar, esses anos marcaram o início de outras guerrilhas, travadas entre as facções políticas que ficaram fora dos governos instituídos na pós-independência. A Guerra Fria foi determinante para o caos que se instalava, ditando a composição de forças no contexto internacional: de um lado, agiam os movimentos ligados à antiga União Soviética e de outro, os financiados pelos Estados Unidos. As relações sociais eram permanentemente tensas e a corrupção lançava seus tentáculos nas instituições e no poder públicos.
Os longos e terríveis anos de imperialismo, as constantes disputadas armadas, os conflitos étnicos entre as diversas comunidades aprofundaram a fragmentação das nações que assim se identificavam tão somente pelas fronteiras definidas em mesas européias. A construção da identidade era algo tão distante como a paz. Ricos em matérias-primas, os países africanos de língua portuguesa sofrem ainda hoje as consequências dos anos de dominação e exploração.
Esse brevíssimo olhar histórico sugere o quão complexa era a situação pós-independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. E o quão violentas. Histórias arrasadas pela ação humana hostil não se recompõem em curtos espaços de tempo. São anos, décadas e, às vezes, séculos para que a reconstrução dos vínculos seja possível.
É dentro dessas fraturas sociais que temos de lançar nossos olhares, se quisermos adentrar as literaturas africanas de língua portuguesa.
Como pensar a consolidação de movimentos artísticos em países violentados e violentos, em que a fome é um flagelo, a miséria e o analfabetismo predominam? Como a história de cada uma das nações forjou a palavra estética? Como, aliás, pensar na formação da literatura desses países?

Aproximações para além do Atlântico

Com a independência e apesar do prolongamento das crises sociais, as nações africanas de língua portuguesa buscaram se afirmar dentro do continente e para o mundo, enquanto buscavam a paz e a reconstrução social. Nesse contexto, os movimentos sociais começam a se organizar para contribuir de algum modo com a construção de um estado autônomo e de direito. Como unir as pessoas em torno dessa busca?
Conceber a palavra como instrumento de luta e de transformação social não é privilégio do imaginário iluminista europeu. Nas nações africanas, os homens das letras, formados muitas vezes em Portugal, são chamados pelo próprio estado de miséria e de carência a se mobilizarem para projetar outro modo de vida possível. Conscientes das possibilidades de ação que a escrita lhes dava, não se eximiram da necessidade de responderem às demandas sociais. Verifica-se, nesse momento, o anseio pela consolidação das literaturas nacionais.
A partir de 1950 e ao longo das guerras pela independência, é que se pode falar, pois, da formação de algumas das literaturas dos países africanos de língua portuguesa. Registros literários anteriores já tinham sido publicados, mas ainda não se reconhecia o que o crítico literário Antonio Candido chama de “sistema literário” e que configura o início de uma literatura vigorosa:

Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular: autores formando um conjunto virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento, definindo uma ‘vida literária’: públicos, restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas circulem e atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e autores precedentes, funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar. (CANDIDO, 1998, p. 6)

As informações históricas sobre as relações literárias entre o Brasil e o império português na África datam já do século XIX, quando o poeta José da Silva Maia Ferreira, autor do primeiro livro africano de que se tem conhecimento – Espontaneidades da minha alma: Às senhoras africanas (1850) – esteve no Rio de Janeiro. O autor divulgou a verve romântica dos escritores brasileiros, reconhecidamente de Gonçalves Dias, como se pode identificar no seu poema “À minha terra”, publicado em 1849:


“De leite o mar – lá desponta
Entre as vagas sussurrando
A terra em que cismando
Vejo ao longe branquejar!
É baça e proeminente,
Tem d’Africa o sol ardente,
Que sobre a areia fervente
Vem-me a mente acalentar.

Debaixo do fogo intenso,
Onde só brilha formosa,
Sinto n’alma fervorosa
O desejo de a abraçar:
É a minha terra querida,
Toda d’alma, – toda – vida, –
Qu’entre gozos foi fruida
Sem temores, nem pesar.

Bem vinda sejas ó terra,
Minha terra primorosa,
Despe as galas – que vaidosa
Ante mim queres mostrar:
Mesmo simples teus fulgores,
Os teus montes tem primores,
Que às vezes falam de amores
A quem os sabe adorar!
(…)”

O poema africano é escrito logo que José Maia regressa do Rio de Janeiro. Chegando às terras brasileiras, o poeta não se cansa de ler e procurar entender a literatura nacional, a fim de produzir a sua própria obra, com características africanas. Para realizar seu intento, estabelece os diálogos intertextuais e, olhando para o continente latino-americano, trata de negar Portugal. O nacionalismo, a busca da identidade, a história do povo emergem: “É em José da Silva Maia Ferreira que se indica uma certa consciência regional, condição primeira para uma consciência nacional” (FERREIRA, 1977, p. 9)
As literaturas africanas de língua portuguesa seguem percursos próprios depois da independência, apesar de também guardarem inúmeras similaridades. Como nos ensina Rita Chaves (1999), ao analisar a literatura angolana, o problema inicial que todas as nações enfrentaram era o da busca de um referencial literário. Portugal parecia muito mais distante então do que sempre fora.
Por que não olhar para a Europa? A pergunta poderia ter resposta fácil para um olhar incauto: negar o colonizador português.
Mas a resposta não é assim tão imediata, quando se têm em perspectiva os intrincados históricos dos países africanos da Comunidade de Língua Portuguesa.
Para além da questão da independência, havia outra ainda mais premente. Tratava-se da formação de uma literatura, que veiculasse tematica e esteticamente valores nacionais. Como resgatar e construir um olhar para o que é “próprio da terra”? A incorporação desse problema pelos escritores levou-os percorrer o olhar de uma ex-colônia: escrever das margens da história não é como escrever do centro dela.
O homem letrado teve, aqui, que desempenhar um papel de arqueólogo: por entre os escombros dos terrores vividos, precisou encontrar e iluminar o que poderia identificar os homens dentro do mesmo território.
Os escritores de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde recuperam do primeiro livro publicado na África o diálogo com o Brasil. Carlos Ervedosa, em Roteiro da Literatura Angolana, analisa esse fenômeno:

Desenvolvia-se um fenômeno original, no âmbito das literaturas de expressão portuguesa, activado por um conjunto de jovens talentosos e cultos espalhados por Luanda e pelos centros universitários de Lisboa e Coimbra (…) Até eles havia chegado, nítido, o ‘grito do Ipiranga’ das artes e letras brasileiras, e a lição dos seus escritores mais representativos, em especial Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado, foi bem assimilada. (ERVEDOSA, 1977, p. 84)

Em 1950, o Brasil impulsiona e dá vigor ao “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, que funda a revista Mensagem, importante periódico em torno do qual se reuniram os primeiros escritores da resistência à colonização portuguesa.
Alguns deles como António Jacinto, Viriato da Cruz, Mário António divulgavam a guerra de independência; outros escreveram no front de batalha importantes obras da literatura universal. Mayombe, de Pepetela, produzido entre 1970 e 1971, é exemplo dessa literatura que surge do e no epicentro da guerra:

O Mayombe começa com um comunicado de guerra. Eu escrevi o comunicado e…o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim nasceu o livro. (http://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=3591)

O Brasil contribuía, mesmo se de modo transversal, para a conscientização crescente da pequena burguesia africana das condições nacionais e valores da terra, incitando a criar e a fortalecer o movimento de resistência cultural e político.
Desses anos, surgiram as primeiras rupturas com os modelos europeus, lidas não apenas em Angola, mas também em Cabo Verde.
Em “Ecos do modernismo brasileiro (entre africanos)”, a crítica brasileira Maria Aparecida Santilli tece as pontes entre os dois continentes, narrando a iniciação na literatura do poeta Jorge Barbosa, um dos fundadores da revista Claridade:

(…) o caboverdiano Jorge Barbosa, como os brasileiros de 22 e seus continuadores, acabou por exercitar a leitura da realidade caboverdiana com lentes próprias, pelo corte arqueológico das camadas culturais do seu país, revolvendo os escaninhos da memória nacional.” (SANTILLI, 1986, p. 130)

A crescente desalienação de uma significativa parcela da intelectualidade de Cabo Verde encontrava no horizonte os protestos literários brasileiros. Se a história do país latino-americano de expressão portuguesa não parece grandiosa aos naturais daqui, aos olhos dos de África é sempre apontada como um projeto possível a ser alcançado.
Nos anos pré-independência, o Brasil representava a possibilidade de atingir a utopia dos novos tempos e possibilitava ao africano sob o jugo colonial divisar outros devir, migrando, para usar a expressão do professor Benjamin Abdala Júnior, “do insulamento ao sonho prospectivo” (ABDALA Jr, 2003, p.230). É de Ovídio Martins o poema-protesto contra o sentimento de evasão do ilhéu diante das vicissitudes da terra:


“Pedirei
Suplicarei
Chorarei

Não vou para Pasárgada

Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue

Não vou para Pasárgada

Gritarei

Berrarei
Matarei

Não vou para Paságada.” (apud FERREIRA, 1975, p.186)

A franca alusão ao poema de Bandeira e a negação à evasão apontam para o que o ensaísta angolano Mário de Andrade afirma ao identificar nos movimentos de resistência à colonização uma evidente articulação entre o movimento de libertação nacional e a literatura africana¹.
O que se vê é que os intelectuais africanos, ao se apropriarem da literatura brasileira, também se apropriavam dos imaginários por ela veiculados, compondo versos e narrativas que dialogavam seja do ponto de vista estético, seja temático.
O poeta e o primeiro presidente de Angola independente, Agostinho Neto, traduz o sentimento da africanidade, disperso pelo mundo:

_____________________________

¹ Vale lembrar que também nossos intelectuais, mentores da Inconfidência Mineira, tiveram exílio em Angola. Em terras angolanas, os brasileiros aprenderam a cultura africana, reconstruindo-a em suas produções literárias.


Voz do sangue

Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro de África

negros de todo o mundo

eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos. (AGOSTINHO NETO, 1982, p. 18)

A África não se limita às fronteiras. Ela está para além delas, correndo nas veias dos homens de outras nações, outros idiomas e outras histórias. As aproximações entre as literaturas não são, pois, gratuitas. Um olhar comparativo acerca da construção das nações de língua portuguesa da África e da América ilumina as proximidades inegáveis que elas guardam para além da identidade linguística, vista na História da colonização e na diáspora africana.

Nacionalismo e Independência: um problema para as literaturas

A luta pela independência nos dois lados do Atlântico impunha outra questão crucial ao lado daquela já mencionada, lida na constituição da identidade nacional. Tratava-se da íntima relação entre a modernização do Estado e a liberdade das pátrias. Conquistar a independência do colonizador implicava em assumir um posicionamento crítico diante das problemáticas internas e da própria noção de pátria.
Como não ver corrompida a perspectiva nacionalista-ufanista de terras cujos povos se mantinham em guerra?
No século XX, essa perspectiva crítica era inevitável.
Era urgente lidar com as diferenças e divergências entre as inúmeras comunidades e ideologias, a fim de construir uma identidade que as unificasse – mesmo se temporariamente – em torno do objetivo comum.
Ao intelectual, que não podia se eximir dos problemas que atravessavam a nação, coube a tarefa de engendrar o espírito de nação, divulgando visões da africanidade portuguesa.
Quem somos? O que temos em comum? Qual a pátria que deve ser liberta? Qual o inimigo comum?
Vivendo os profundos dilemas, o escritor buscava animar os movimentos de independência. É o que canta a poetisa de São Tomé, Alda do Espírito Santo:


“Para vós carrascos
O perdão não tem nome.
A justiça vai soar
O sangue das vidas caídas
Nos matos da morte
Clamando justiça
É a chama da humanidade
Cantando a esperança
Num mundo sem peias
Onde a liberdade é a pátria dos homens” (SANTO, 1978, p. 45)

O que se lê nesse período de consolidação das literaturas africanas de língua portuguesa é que os problemas experimentados pelos escritores do Romantismo brasileiro – a saber, a convivência entre o nacionalismo-ufanista, o desejo da libertação da pátria e a visão crítica sobre ela – contribuíam para os africanos pensarem sobre as questões vividas quase um século depois.
A independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau evidentemente não repetiu a História Brasileira. Assim como as literaturas africanas de língua portuguesa também não copiaram as letras brasileiras. Mas se aproximaram e muito, projetando inclusive problemas comuns. Tecendo o imaginário da pátria de todos os povos colonizados, os escritores encontraram na literatura o terreno fértil para que se fortalecessem as identidades nacionais.

REFERÊNCIAS:

Livros

ABDALA Jr., Benjamin. “Utopia e dualidade no contato de culturas: o nascimento da literatura cabo-verdiana”. In: LEÃO, Ângela Vaz (org). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC, 2003, p. 209-236)
AGOSTINHO NETO, António. A renúncia impossível. Luanda: INALD, 1982.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. (v.1)
CHAVES, Rita. Formação do romance angolano. São Paulo: Via Atlântica, 1999.
____________. O Brasil no imaginário nacionalista africano: O trânsito das letras e o roteiro das utopias”. In: MENEZES, Jaci M. F. Relações no Atlântico Sul: história e contemporaneidade. Salvador: UNEB, 2003, p. 39-48.
EVERDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Lisboa, UEA, 1977.

FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa, Instituo de Cultura Portuguesa, 1977.
SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidades. São Paulo: Ática, 1986.
SANTO, Alda do Espírito. É nosso o solo sagrado da terra: poesia de protesto e de luta. Lisboa: Ulmeiro, 1978.

Meio Eletrônico

http://www.portaldaliteratura.com/livros.php?livro=3591, consultado em agosto de 2011.