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De ensino religioso, pós-modernidade e ciências da religião: o bem e o mal nas asas do sertão

DE ENSINO RELIGIOSO, PÓS-MODERNIDADE E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO: O BEM E O MAL NAS ASAS DO SERTÃO

OF RELIGIOUS EDUCATION, POST-MODERN SCIENCE AND RELIGION: THE GOOD AND EVIL ON THE WINGS OF SERTÃO

BRAGA.Hermide Menquini-PUCSP

bragamem@uol.com.br

Resumo

A Pós-Modernidade trouxe como paradigma a era da informática, tal atributo não extingue as religiões, nem poderia, uma vez que a religiosidade é um atributo antropológico por excelência, convalidado pelos parâmetros éticos e lógicos, mediando a cultura. O Ensino Religioso ressurge nessa nova etapa da Educação obedecendo a normas que pretendem esclarecer as famílias e contribuir com sua instituição; surgiram em um misto de dificuldade, experimentação e motivação. Nessa época, desenvolvíamos pesquisa em Ciências da Religião, com fulcro no campo simbólico. Por meio da cultura regional sertaneja, eivada de misticismo e de profunda observação metafísica, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, ganhou conceito de universal por ter esses fundamentos. A classificação desta obra literária como pós-moderna apoia-se em Edgard Morin, o questionamento pelo livre arbítrio encontra fundamentação em Henrique Claudio de Lima Vaz e Terezinha Azeredo Rios, enquanto a análise hermenêutica sustenta-se em Paul Ricoeur, escorado em alguns aspectos de Gaston Bachelard, conforme bibliografia. O resultado da pesquisa é a comprovação tácita de que o homem é autônomo, dada sua capacidade de compreender, por isso imprevisível e mutável. Nessa autonomia, o bem e o mal se permitem, com inteira responsabilidade humana.

Palavras-chave: Religião. Homem. Pós-Modernidade. Grande Sertão:Veredas. Mal.

Abstract

The Post-modernity as a paradigm brought the computer age, this attribute does not extinguish religions, nor could it, since religion is an anthropological attribute of excellence, ethical standards and validated by logic, mediating culture. The Religious Education reappears in this new stage of education obeying rules that aim to unravel families and contribute with your institution appeared in a mix of difficulty, trial and motivation. At that time, we developed research in Science of Religion, with the fulcrum in the symbolic field. Through regional cultural hinterland, tinged with mysticism and metaphysics of deep observation, in Great Hinton: Paths of João Guimarães Rosa, won universal concept to have these fundamentals. The classification of this literary work as postmodern is supported by Edgard Morin, questioning free will is the foundation on Claudio Henrique Vaz de Lima Azeredo Terezinha and Rivers, while the analysis is underpinned by hermeneutics of Paul Ricoeur, anchored in some aspects of Gaston Bachelard, as bibliography. The search result is tacit proof that man is autonomous, given their ability to understand, so unpredictable and changeable. At independence, good and evil are allowed, with full human responsibility.

Key-words: Religion, Post-modernity , Grande Sertão : Veredas, Evil

Quando rompeu o Séc. XXI, entre o onze de setembro e as centenas de religiões novas, descobrimos a necessidade de oficializar, ainda que em circunstância de disciplina eletiva, o Ensino Religioso na educação pública. Lecionamos para as primeiras turmas e tentamos entender a realidade pós-moderna pelos mitos. Seguimos a estratégia de abordagem a qual surgiu no âmbito acadêmico como recurso, pois a ancestral forma de conhecimento, anterior às epistemologias científicas, demonstrou uma alternativa ao impasse da era que se iniciava.
Passada a primeira década, o contexto pós-moderno e ensino religioso evoluíram . Catástrofes naturais em manifestações novas são inovações de um universo depredado, e as velhas manifestações de estratégias bélicas descaracterizadas, de exércitos, para grupos inteligentes repetem velhos extermínios.
Procuramos aqui, na prosa de um dos místicos do século XX, João Guimarães Rosa, o mestre da expressão, o epifórico¹: adjetivo que cunhamos para sua incrível ligação metafisica com a percepção humana , através de sua alma  de poeta, posto que epífora, para o filósofo RICOEUR (2000, pp23-25.)² é a parte móvel, itinerante entre os dois polos da metáfora e a imaginação. Nisto baseou-se em  BACHELARD (1961). A fenomenologia do imaginário tem, segundo (BACHELARD apud RICOUER, 2000, p.328-329.), hipótese plausível quando admite uma origem psíquica para a linguagem poética . Julgamos que, se a espécie humana se distingue pela linguagem, e a linguagem inclui o ícone, a qual reflete na imagem, o imaginário penetra no ser e no pensar.

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¹ BRAGA.H.M. As expressões do mal  nas Veredas do Grande Sertão: metáforas-epíforas  e símbolos e seus horizontes de transcendência . Tese. (Doutorado em Ciências da  Religião).  São Paulo: PUC, 2010.
² O filósofo Paul RICOEUR dedicou-se a estudar as questões humanas. Entre elas, a questão da comunicabilidade pelas linguagens, e a questão da simbolização nestas linguagens . O conteúdo deste trabalho veio nos criar motivação que nos levou a conhecer suas obras, as quais tratam desse assunto. Assim, já estudando a obra de Guimarães Rosa, particularmente Grande sertão: veredas, as necessidades teóricas nos levaram a conhecer , deste filosófo Interpretações e ideologias , publicação em português da Editora Francisco Alves , em 1997. Esta obra esclarece os princípios básicos do método hermenêutico, ou seja , filosofia da linguagem. Ainda nos levou a pesquisa a adotar La symbolique du  mal, publicação da editora Montaigne , 1976, que trata da origem da significação , unindo essência e simbolização das percepções, e ainda desse mesmo autor, A metáfora viva, editada pela Loyola, 2000, no Brasil, fundamenta Paul Ricoeur na defesa da metáfora por analogia, quarta proposição de Aristóteles, na sua Poética. Tal estudo, pela excelência iria constituir-se em teoria para nossa ousada missão: analisar as metáforas do mal, na obra máxima de João Guimarães Rosa, cujo estudo resultou a tese de doutorado, a qual referendamos na citação¹, desta página .

Esta é uma era de profunda transição cultural, pois, segundo MORIN, (2003, p.479.) o trânsito entre os polos do caos e do infinito, originado da intensa tecnologia, aproxima ciência e mito como recursos. Estas são possibilidades, as quais se apresentam como meios para a evolução da humanidade, nesta etapa histórica. Deste teor serão as orientações religiosas.
Nosso epifórico autor, João Guimarães Rosa, derramou de sua alma as metáforas as quais enfocam o contexto humano pós-moderno, já naquele anunciar da segunda metade do Séc. XX. Aí está uma analogia; a mística de Guimarães escoando pelas epiforas, segundo a Poética de Aristóteles.
Esse novo tempo, de novas concepções, entre polos tão intensos, caos e infinito oferecem-se à educação . Eis nosso campo, nossa meta de trabalho

O bem e o mal nas asas do Sertão.
Mas há hermenêutica porque há a convicção e a confiança de que a compreensão tem condições de reintegrar a não compreensão pelo movimento da questão e da resposta baseada no modelo dialogal .(RICOUER,1977,56.)
Sabe o senhor : sertão é onde o pensamento da gente se soma a mais forte do que o poder do lugar . Viver é muito perigoso. (ROSA,1967, p. 122)
Explico ao senhor : o diabo vige dentro do homem , os crespos do homem _ ou é homem arruinado , ou homem dos avessos . Solto , por si cidadão , é que não tem diabo nenhum.
enhum ! _ É o que digo. (ROSA,1967 , p. 11)

Grande Sertão: Veredas é um universo. Isso transparece por seu título, o qual sintetiza essa amplidão. Com Grande Sertão, João Guimarães Rosa as forças cosmológicas e transcendentais conjugam-se em ebulição feérica. A prosa de Guimarães explode em criatividade por meio de linguagem inusitada.
Em qualquer página que se pousem os olhos, essa elementar descrição que aqui ensaiamos corporifica-se na riqueza de sua expressão: “Sou do fogo. Sou do ar. Da terra é é a minhoca _ que galinha come e cata! Esgravata”.(ROSA,1967, p.199)ou: “O que fosse, eles podiam referver em imediatidade , o banguelê, meu zunir: que vespassem.” (ROSA, 1967, p. 199).
Tanto no primeiro, quanto no segundo segmento citado, podemos  pressentir a grande efusão com a qual as ações ocorrem. Fogo é volátil e no ar ele se volatiliza. Ambos são elementos complementares com alto teor de atividade. Em contraste, está relativizada a presença da minhoca a qual, em oposição ao fogo purificador, encrava-se na terra, em sua trajetória, e no ambiente de roça é dizimada pela galinha, ave de terra, sem voo. Esta predadora, cuja minuciosa e tenaz subserviência escrutina o espaço em busca de migalhas, acaba por fazer o contraste  com o fogo purificador, ágil no crepitar de suas chamas. Nessa expressão de Guimarães Rosa, podemos notar, ao lado do regionalismo na linguagem, a disparidade entre o superior e o inferior. São posições metafísicas, que, em grande contraste, relacionam-se ao espírito.
No segundo segmento citado, o autor reporta-se à súbita e inesperada reação que os jagunços poderiam ter. A narração é feita com intenção de caracterizar o perfil psicológico dos integrantes do bando, no momento em que eram convocados a ouvir os chefes e a reagir em conjunto como turba. Como nada estivessem entendendo, a passividade provinha de desorientação, fato que poderia recrudescer em reação tão violenta quanto era ali a ignorância.
Talvez venha daí a noção do verbo: vespassem, o qual retrata a atividade da vespa, que voa agressivamente nos momentos precedentes à ferroada. A relação nocional se completa pela associação ao verbo zunir, ainda manifestação onomatopaíca de suas atividades aladas. A despeito de vespa ser inseto, depreende-se que entre os jagunços de tal bando os sentimentos careciam de nobreza e esta predisposição fica patente pelas asas inoperantes, no caso da galinha, ou  de aspecto violento, da vespa.
Ambas as citações, entretanto, dão conta da relação com Zé Bebelo, chefe de bando rival a Joca Ramiro. Ambos lideram dois bandos famosos na jagunçagem dos Gerais. Joca Ramiro será morto por Hermógenes, o tradicional inimigo nessa obra – o todo mau,  todo bandido, relacionado com o  Cujo –  Esse episódio liga-se a mais comovente ação da obra, pois a vingança dessa morte incidirá no duelo entre Hermógenes e Diadorim, do qual nenhum dos dois sairá vivo .
Diadorim era filha mulher de Joca Ramiro, e as duas circunstâncias, filiação e gênero, escondidas até um final surpreendente, compõem uma das maiores ficções da literatura brasileira. Os estudos contemporâneos sobre o imaginário começaram com Gastón Bachelard.
O romance é uma narrativa com aspectos clássicos por parte do personagem Riobaldo, portanto em primeira pessoa.
A narrativa é disposta em partes: começa com o velho Riobaldo narrando a velhice, retrocedendo à meninice para evoluir à fase adulta, quando se dá a atuação no cangaço e a evolução para a chefia. Do ponto de vista estrutural, reconhecemos  uma primeira parte na qual os personagens estão velhos: é o ponto de partida da narrativa com Riobaldo alquebrado já, e refletindo, para depois convergir para  etapas diferentes da meninice e juventude, até que, já homens feitos virem a se agrupar em torno  do mesmo bando de Riobaldo, Tatarana, que virara chefe. Tal denominação espelha-se nos calangos nordestinos, ao mesmo tempo lagartos com ligações a dragões, com língua de fogo. Como essa não fosse a melhor definição para o caráter de Riobaldo, o apelido não vingou.
O que observamos em Grande Sertão: veredas é esse caos estrutural a que Riobaldo se refere, ou seja, caracteriza  o contexto esfuziante do sertão tropical, justificando, com isso, até nossas enunciações, ora para a estrutura da obra, ora para as significações em um mesmo parágrafo. Embora conheçamos as regras básicas metodológicas, ante o vigor da narração roseana, nos postamos como crianças em loja de brinquedos. Essa desordem contextual caracteriza a obra como pós-moderna, precocemente, pois foi escrita em 1956.
Procuramos, entretanto, uma ordem pré-estabelecida por nossa meta neste trabalho. A epigrafe e as duas citações que encabeçam este segmento, (item 1)  dão conta do aspecto da obra em análise: uma  concepção vista por meio das significações suscitadas pelo perfil das aves, componentes da ambientação. Além da guerra, presente como incentivadora das ações, surge o fator complicador, representado pela atração entre Diadorim e Riobaldo. Motivo de todos os tormentos do pobre jagunço, este sentimento natural metamorfoseia-se em obra do Demônio, traduzida pela tentação de amar um igual:”De perto senti a respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele .  Não fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava (ROSA, 1967,  p. 151).
O fato de Diadorim viver travestido também reforça a mesma ideia, uma vez que na Idade Média isso era costume. Nas guerras, surgia como proteção às donzelas. Esses argumentos vão provar a natureza da condição humana, colocando-a como substrato às condições culturais, ocasião em que suscita a religiosidade como o fator preponderante para as condutas humanas. Constitui limite entre o humano e o inumano, e, de certa forma, orienta o arbítrio. Fundamenta-se, por conseguinte, em pressupostos éticos  e  morais, norteadores da sociedade.
A esse respeito consideramos as afirmações:

O comportamento é o arranjo dos diversos papéis que desempenhamos na sociedade. Há, sabemos, em cada sociedade, modelos, scripts prontos parra esses papéis, entendendo-se pronto como preparado pelos homens que compõem essa sociedade. (RIOS, 1993, p. 20)

Dessa forma, constituindo o ethos de cada sociedade, as relações desenvolver-se-ão em consonância e estruturam-se, edificando as sociedades; iluminam seu grau de importância no grupo diante  da magnitude da essência humana. Estes são os limites que a organização social estabelece tendo como relação a espécie, no sentido de personalizá-la, marcá-la de maneira própria, regional, local e economicamente. A esse respeito, temos o fundamento: O indivíduo trabalha e consome , aprende e cria , reinvindica e consente , participa e recebe: a universalidade do ethos se desdobra e particulariza em ethos econômico , ethos político , ethos social propriamente dito.( VAZ, 1986, p. 22)
Diante destas constatações, consideramos Riobaldo, que tem pudores, obrigações de um bom chefe, e  Diadorim,  que tem astúcia, artimanhas para esconder sua situação de mulher, veem-se na mesma situação,  ambos porfiam com  as emoções, atributos com os quais João Guimarães Rosa monta seu formidável jogo com os leitores. Este enfoque contempla  iminentemente o ensino religioso atual e inerente às circunstâncias da época.
Muitas são as vertentes dessa obra, todavia, considerando-se o trabalho proposto, analisaremos, como se disse, o bem e o mal, permeados pela analogia do comportamento das aves.
Assim sendo, atributos eleitos ao acaso na imensidão de referências de todas as ordens são relacionadas: linguagem, cultura popular eivada de brejeirice ímpar, misticismo na razão direta da espontaneidade e elucubrações próprias para o isolamento  de que o sertanejo se reveste, misturadas a um grau avantajado de imaginação. Essa predisposição da obra leva o leitor a avaliar o potencial roseano. Para exemplificar, destacamos uma frase das muitas expressões que figuram no repertório estonteante do universo de Grande Sertão: Veredas – Que jagunço amolece quando não padece. (ROSA,1967, p. 223)
Em meio a um intrincado sistema dessa jagunçagem, guarnecido pela riqueza ambiental do sertão tropical brasileiro, sustentado pelo lado transcendental humano, surge esta obra em metáfora  maiúscula, Grande Sertão, ou seja, todo um espaço multissignificativo sustentando o fulcro antropológico .
Podemos, portanto, conceber essa ideia em uma frase apenas. Conjugou-se na mata sertaneja um imenso espaço de representação cosmológica, tais como exposições máximas das emoções primordiais humanas. Elas externam-se pela guerra constante entre grupos de jagunços, situações permeando o bem e o mal em posicionamento pendular na obra.  Esta polaridade entranha-se em um dos pontos capitais do sentimento humano, o amor. Este sentimento, que ao lado do poder financeiro, outro polo de todos os projetos humanos, ganha contornos sobrenaturais, alia-se ao caráter soturno sertanejo, predominante naqueles campos de guerra.
Na ficção de Guimarães, Diadorim apegou-se aos procedimentos masculinos; tomou gosto pela guerra e transformou-se em grande atirador. Em duelo final com Hermógenes, morreu vingando o pai, Joca Ramiro.  O clímax da obra é a descoberta de que Diadorim era mulher, e, doridamente por Riobaldo.  A atração, desde a primeira vez em que se viram, fica entendida aqui. A atração entre dois meninos, então de difícil aceitação, hoje diluída, em parte por legislações e projetos de inclusão, testemunho da tendência pós-moderna desta obra, está em ser considerada pelo contexto machista do bando no sertão como um fato sobrenatural de característica maligna.  No entanto, era inerente e mais legítima do que as aparências naquele rincão. Na ficção de Guimarães Rosa existem índices a essa situação em: “Diadorim, sério, testaldo. Tive um gelo. Só os olhos negavam, meu  corpo gostava do corpo dele na sala do teatro  Diadorim; Você não tem. Não terá uma irmã” (ROSA,1967,p.140), e “Vida devia de ser como na sala de teatro  cada um inteiro fazendo gosto sem papel desempenho. Era o que eu achava”(ROSA,1967, p.187)
A referência à sala de teatro reporta-se ao conceito psicológico junguiano de sombra e persona. A persona é o papel social que se impõe pela organização coletiva; essa imposição é revelada com pesar por Riobaldo; a sombra é essa recusa interiormente desenvolvida. Do equilíbrio dessas duas forças depende o indivíduo para  o desenvolvimento em todos os fatores de sua vida em comunidade.
Diadorim, pequeno diabo. Isso é dito em linguagem regional, personalizando o jagunço Riobaldo Tatarana. A alma cabocla expõe-se por meio de atributos regionais eivados de referências populares, revestidas pela curiosidade com que o mistério assombra o imaginário. Essa presença constante, feito obsessão, por meio do enfoque “malsão” que Riobaldo assume, surge  na prosa mágica de João Guimarães Rosa em linguajar caboclo, e, ao mesmo tempo, cabalístico : “E aí , desde aquela hora conheci que o Reinaldo , qualquer coisas que ele falasse virava sete vezes.” (ROSA,1967, p.112)
Nas infindáveis veredas da expressão, aparecem dezenas de exemplos de cada afirmação do autor, entretanto, algumas se tornam peremptórias e logo exigem citação. É o caso desta que se segue: “Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água , escutei o fife de um pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei; Era Diadorim que chegando , ele já parava perto de mim. ”(ROSA,1967, p.181)
Instigado por esse aspecto de mal e de mistério, o personagem Riobaldo amealha para sua prosa a mesma atitude para os leitores da obra. O que ocorre em Grande Sertão : Veredas  como estratégia ficcional é manter os leitores presos a esse estigma suscitado pela atração obsessiva, reforçada pelo inexplicável fato que tende para o sobrenatural. Ao longo da narrativa, entretanto, por inúmeros índices, alimentando a dialética interna à interpretação, sobrevemos a solução dada ao final da obra. 
Para Riobaldo, a atração por um igual configurava-se na presentificação do demônio. Assim sendo, o bem e o mal graçam na imaginação do personagem e este alastra-a para a concepção dos leitores, constituindo-se em elemento de atração e fidelidade a uma  obra extensa, com quatrocentas e sessenta páginas.  O clima dialético entre bem e mal expressa-se no fragmento seguinte: “Que foi isso que me invocou , o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim rúim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco , que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza.” (ROSA, 1967, p. 179).
Conjuntos de referências dialéticas desse porte são comuns em toda a obra. Aparecem revestidas do regionalismo mineiro, em desempenho arcaico. Outro aspecto a notar na estruturação da obra é a postura de comparações e tentativas definitórias de Sertão. À medida que, entretanto, a obra flui, as definições convergem para Vida . Desta forma, se no fragmento anterior notamos posicionamento acerca do bem e do mal, agora iremos constatar projeção como resultado na prática da vida: “A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz a esperança mesmo do meio  do fel do desespero, ao que este mundo é muito misturado.” (ROSA, 1967, p. 169) .
Revelações dessa ordem são contestadas no próprio texto com situações apontadas para a verdade a qual explode ao final da obra como trunfo de composição. Várias vezes o autor ilumina o aspecto feminino no personagem Reinaldo (Diadorim).  Nesse sentido, usando da ambiguidade linguística, Guimarães, no relato do primeiro encontro entre os dois meninos,adianta ao leitor especulativo a condição feminina de Diadorim. “E o menino pôs a mão na minha . Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele , no profundo , desse as minhas carnes alguma coisa . Era uma mão  branca , com os dedos dela  delicados _ “( o grifo meu ) , (ROSA,1967, p.84) .
Essa contratação da preposição de com o pronome pessoal feminino ela pode no contexto da frase referir-se tanto ao substantivo mão, quanto a uma sutil referência à menina, escondida pelos trajes e pela ficção, aqui maliciosamente apontada. Trezentas paginas depois, ela, a moça agora, não mais Diadorim, um  pequeno diabo, seria  revelada . Ainda à pagina 115, a estratégia repete-se por meio deste fragmento : “Os afetos. Doçura do olhar dele me transportou para os olhos de minha mãe.” (ROSA, 1967, p. 115)
Este tipo de insinuação é mantida em situação paradoxal, no entanto, a constatação desta é um trabalho de síntese a qual só é atingida pela revelação, às ultimas páginas. O assunto polêmico do qual se reveste a suspeita é mais forte do que a realidade e assim monopoliza as atenções, abrindo, porém, vertente para a valorização da diversidade cultural. Age no substrato humano, fato já comprovado pelas fundamentações em Terezinha Azeredo Rios.    
Essas considerações, a âmbito geral na obra, visam a contextualizá-la, situação ideal para abordarmos um dos múltiplos aspectos que nela se apresentam. Nosso clima tropical favorece a abordagem às aves, comumente encontradas em romances regionais brasileiros. Notadamente em Grande Sertão: Veredas aquilo que transparece é o interesse de João Guimarães Rosa, por meio das pesquisas que fez sobre o tema. Não é espantoso, pois, o uso, na relação entre os personagens, da ficção em  situações, por meio da interpretação  das aves .

1.1 O mundo alado de Grande sertão: veredas.

Grande Sertão: Veredas tem, pois um mundo alado, referências, situações metafóricas envolvendo esse tipo de expressão e a trama criam o sertão-mundo de Guimarães Rosa. Quando se vale do desconhecimento do leitor sobre o sexo de Diadorim, o autor adianta isso na ambientação dos recantos onde se passam as ações, usando a imagem.  Nesse procedimento, percebem-se as aves de aspecto agradável, dóceis. Aparecem indiscriminadamente para Octacília como para Diadorim. Esses indicadores aparecem em “Comparecer nos Buritis Altos por causa de Octacília. Continuação de amor. Quis não. Suasse saudades de Diadorim. Só como o céu e as nuvens lá atrás de uma andorinha que passou ( …) Viver é um descuido prosseguindo.” (ROSA, 1967, p. 56)
As referências a situações excusas aos inimigos, aos homens em geral, correspondem a aves de conotação sombria, de rapina e não raro aparecem animais de aparência grotesca como sapo, cavalo desajeitado fazendo parte do cenário; entretanto, quando se refere a Octacília,  sua noiva, ou Diadorim, sempre surge comparação com variação de aves delicadas, ou em animais faceiros, estes em menor ocorrência .
Ao lado das manifestações límpidas das aves de plumagem coloridas e daquelas de brancas penas, fazendo moldura para a sensibilidade das moças que povoam a obra, aparecem aquelas de aspecto soturno. Estas estão sempre guarnecendo os maus jagunços, os traidores, como é o caso do Hermógenes, ou ainda as más situações.
Esta é a imagem que o autor deseja metaforizar referindo-se à atuação dos jagunços em emboscada. O urubu é a ave que serve de inspiração à ambientação da zona rural nesse episódio. Outro elemento adequado para esse tipo de imagem é o morcego: “Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas de defunteiras” (ROSA, 1967, p. 156).
Diante de animal de aspecto tão funesto, João Guimarães Rosa cria imagens fiéis à estética, e graças a seu grande talento, traduzem veracidade de forma eufêmica. É o momento reconhecemos o bom e o mau aspecto, percebido por meio das aves. É quando verificamos as boas e as más manifestações da vida do campo, e, que, entretanto, aparecem na obra com o mesmo bom gosto, com a mesma abordagem criativa capaz de enlevar e seduzir; cumprindo, dessa forma, a função da literatura .
Os pássaros, que na trama de Grande Sertão : veredas são de presença constante e uniforme, estendem-se em noção pela morfologia; amealhando para a obra a questão simbólica do pássaro tomado pelas circunstâncias do poder alado que o lança ao infinito, em outra mais profunda simbologia, e, de proximidade com o divino mostram-se pelas andorinhas alvissareiras, ou, ao contrário, como deformações de mamíferos terrivelmente alados, na figura do morcego. Essas asas aparecem como uma impostura, estigmatizando para o mal esse animal, no contexto da obra.
Da simbolização nocional, João Guimarães Rosa parte, nesta presente proposta para a extensão da temática ave, contaminando as expressões em uma das muitas variantes que encontra para  extravasar  sua inspiração: “O senhor já sabe: viver é etcetera…Diadorim alegre e eu não .. Transato no meio da lua (……) E de manhã os pássaros que bem – me- viam  todo o tal tempo.Gostava de Diadorim de um jeito condenado.( (ROSA, 1967, p. 74)
Constrói aqui uma espécie de parábola, a partir de um substantivo composto de adjetivo e verbo, elididos por pronome pessoal do caso oblíquo, concentrando neste o fulcro de sua criação, ou seja, de bem –te- vi , para bem –me viam. O autor toma , neste ponto,  o procedimento dos textos das santas escrituras, transportando para a natureza tropical a divindade do evangelho. Trata-se de transferência de amor divino em contexto cultural brasileiro. Em nível semântico, o autor desloca o enfoque do homem, que nomeia a espécie Bem –Te- Vi para o objeto. O resultado cria uma metáfora única, por meio do verbo neológico conjugado : bem –me -viam .
O espírito buliçoso de Guimarães Rosa, respaldando nas aves as melhores e as piores sensações da obra, predispõe o ser humano a se relacionar com os objetos naquilo que toca com mais proficiência a alma humana, ou seja, o medo, a ansiedade  e a ternura .
A abrangência da ficção atinge um desempenho concebido nas enunciações. Os pressupostos culturais discorrem por polos diversos da história; apresentando o bem e o mal descontextualizados; ressaltando a extensão regional influindo na conceitual, marcando étnica, regional e eticamente as populações.   
Comparamos a obra de João Guimarães Rosa, em sua totalidade, com o ramo trazido pela avezinha que saiu da arca de Noé.  Essa simbolização mostra que qualquer ramo era considerado sinal de terra e terra, sinal de vida  naquele contexto.O atributo da simbolização estabelece o fator religiosidade no homem.  Assim interpretamos  Grande Sertão : veredas, pois como já  discutimos, esta obra que é o simulacro do universo, não o fosse plena de veredas. Constatamos ainda que as ocorrências ao longo da vida têm origem  na  nossa essência , ad infinitum.
A narrativa inicia-se no final da vida de Riobaldo, que logo depois começa narrar juventude, infância e maturidade em sua vida; vida de Diadorim e seus demais companheiros. Isso forma uma sequência assimétrica cronologicamente. A predisposição da estrutura da obra e a porção ,por nós analisada, converge àquilo que Guimarães afirma na introdução da  narrativa:  “Digo: o real não está na saída , nem na chegada , está no meio da travessia.” (ROSA, 1967, p. 52).
Admitimos, com tal citação, a assimetria e a ciclicidade da obra, de leitura infinita, como o limite para conhecimento humano. Esse deslocamento, essa ciclicidade, a concentração das aves entre a primeira terça parte e a metade da obra atestam mobilidade de segmentos e alteridade para interpretação. Em outras palavras, a obra é tão imprevisível e mutável quanto a vida. A partir dessa reflexão, a esperança instala-se partindo do princípio de que Deus nos norteia nessa busca infinita como um instrumento sensível. Razão e motivo para a fé no amanhã e para as descobertas nessa e dessa travessia.
A escola, lugar de luz da ciência e da fé conjugadas, pode interdisciplinar os saberes, e, por meio  da compreensão das linguagens das diversas modalidades da arte, interpor, mesmo no regime laico da escola pública, a percepção do humano, fundamentada na sua religiosidade indelével, a partir do ângulo formado entre antropologia e psicologia, entre esta primeira e a filosofia, sustentadas pelos fenômenos sociológicos ocasionados pelas culturas regionais.
Nessa dimensão, geografia e geometria dão-se à analise por meio da matemática e do eixo nocional histórico, como suporte para retrospectos e análises desta nossa travessia. Violência de todos os âmbitos, catástrofes podem ser entendidos, minimizados, evitados, porque compreender é a vocação do homem; o homem humano.

Referências:

BACHELARD, Gaston. La Poétique de l’espace. Cidade: PUF, 1961
MORIN, Edgard. O método 1: a natureza da natureza. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003. 479 p. Trad. de Ilana Heinberg.
RICOUER. Paul . A metáfora viva. São Paulo: Loyola , 2000.
_____________Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves ,1977
RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e competência. São Paulo: Cortez,1993.
ROSA, João Guimarães. Cartas a William Agel de Melo. Cotia: Atelier Editorial,1998
______. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967.
VAZ.Henrique de Lima . Escritos de filosofia I. São Paulo: Loyola, 1986.