Arquivo da categoria: volume 7, número 1 (2015)

AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: instrumento de exercício de poder e desenvolvimento de estratégias

AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: instrumento de exercício de poder e desenvolvimento de estratégias

INSTITUTIONAL EVALUATION: exercising power tool and development strategies

MARCELO LEANDRO FERRAZ ALVES

Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo
UNIBR-Faculdade de São Vicente
mlferrazalves@terra.com.br

RESUMO

O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) inclui, como um de seus indicadores, a Autoavaliação Institucional, de responsabilidade das próprias Instituições de Ensino Superior (IES) e promovida, em seu âmbito, pelas Comissões Permanentes de Avalição (CPA). Essas avaliações devem gerar ações internas nas IES com o intuito de qualificar seus serviços, instalações e profissionais. A avaliação cumpre funções as quais envolvem relações de poder e estratégias desenvolvidas por seus usuários para atingir seus objetivos. É relevante, portanto, identificar esses mecanismos que influenciam diretamente o preenchimento das ferramentas de avaliação e que impactam os resultados auferidos e as ações decorrentes desse processo. Com este artigo, pretendemos analisar quais são os mecanismos, as estratégias e as relações de poder envolvidos na realização da avaliação institucional, a partir das representações dos respondentes, incluindo professores e alunos.

PALAVRAS-CHAVE: Autoavaliação. Avaliação institucional. Educação.

 

ABSTRACT

The National System of Higher Education Assessment (SINAES) includes as one of its indicators, the Institutional Self-Assessment of responsibility for their own higher education institutions (HEIs) and promoted in its scope, the Standing Committees of rating (CPA). These evaluations should generate internal actions in HEIs in order to qualify their services, facilities and professionals. The evaluation fulfills functions that involve power relations and strategies developed by their users to achieve their goals. It is important, therefore, to identify those mechanisms that directly influence the completion of assessment tools and impacting the income earned and the actions resulting from this process. This study aims to examine what are the mechanisms, strategies and power relations involved in making the institutional assessment from the representations of the respondents including teachers and students.

 

KEYWORDS: Self-evaluation. Institutional evaluation. Education.

 

INTRODUÇÃO

A Avaliação Institucional tem procurado cumprir, ao longo dos anos, importante papel na busca da melhoria dos níveis de aprendizagem dos alunos nas Instituições de Ensino Superior (IES) e maior eficácia na solução dos problemas detectados a partir da análise dos dados e das informações coletados, portanto é um processo, o qual não se esgota no simples momento da avaliação; ao contrário, é um caminho longo e complexo, pois depende da concepção e responsabilidade de cada ator envolvido, como aponta Sanches (2007):

Apesar de muitos esforços terem sido empreendidos para implementar a Avaliação Institucional nas instituições de ensino superior, seu conceito entre os educadores menos atentos ainda se restringe, na maioria das vezes, ao processo de ensino-aprendizagem ou, ainda, apenas à avaliação das condições físicas da instituição. É preciso partir do princípio que avaliar não é medir, é começar com o pé direito, não se pode confundir avaliação com mensuração. A mensuração deve, quando necessária, ser apenas o pontapé inicial, pois no processo avaliativo interagem diferentes variáveis que compõem o quadro final da Avaliação Institucional. (SANCHES, 2007, p.18)

A ausência de uma cultura avaliativa, de diretrizes, de critérios e estratégias de avaliação, as quais propiciassem uma leitura situacional, o mais próximo possível da realidade, fizeram da Avaliação Institucional um instrumento, às vezes,incompreendido e, muitas vezes, não utilizado para efetivamente diagnosticar os problemas e indicar as soluções mais satisfatórias no âmbito de uma IES.

Em 2004, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais– INEP publica as Diretrizes para Avaliação do Ensino Superior, elaborado pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES), com o objetivo de subsidiar os responsáveis pela execução do processo de avaliação. O documento, em sua introdução, define a quem se destina:

[…] constitui-se em parâmetro básico para orientar as atividades dos responsáveis pela execução da avaliação, seja o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em âmbito nacional, sejam as Comissões Próprias de Avaliação (CPAs), responsáveis por sua implementação no âmbito de cada instituição de educação superior. (BRASIL, 2004, p.02)

As Diretrizes para Avaliação do Ensino Superior estão fundamentadas na Lei nº 10861/2004 (BRASIL, 2004) e sua operacionalização visam, de acordo com o seu teor:

  • à melhoria da qualidade da educação superior;
  • à orientação da expansão de sua oferta;
  • ao aumento permanente da sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social;
  • ao aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional.

Quanto à avaliação do ensino superior, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 9º, explicita a responsabilidade da União em relação à criação de um Sistema Nacional de Avaliação:

Art. 9º, Inciso VI: assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino. (BRASIL, 2006)

A Avaliação Institucional do Ensino Superior é concebida em duas etapas que se complementam, conforme Dias Sobrinho (2002, p.134) “a avaliação interna e externa devem fazer parte de um mesmo processo articulado, de modo a se complementarem e não se excluírem”.

A avaliação interna, denominada Autoavaliação, é Coordenada pela Comissão Própria de Avaliação (CPA) de cada instituição e orientada pelas diretrizes e pelo roteiro da autoavaliação institucional da CONAES.

A Avaliação externa érealizada por comissões designadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e tem como referência os padrões de qualidade para a Educação Superior expressos nos instrumentos de avaliação e nos relatórios das autoavaliações das CPAs.

O processo de avaliação externa, independente de sua abordagem, orienta-se por uma visão multidimensional, a qual busca integrar sua natureza formativa e de regulação, em uma perspectiva de globalidade.

Em seu conjunto, os processos avaliativos devem constituir um sistema que permita a integração das diversas dimensões da realidade avaliada, assegurando as coerência conceitual, epistemológica e prática, bem como o alcance dos objetivos dos diversos instrumentos e modalidades.

Observa-se assim, a importância da autoavaliação nas Instituições de Educação Superior (IES), pois, por meio delas, são coletadas as informações que as auxiliam na busca do conhecimento de suas potencialidades e fragilidades, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento de estratégias para sanar eventuais pontos fracos.

Segundo Belloni (1998) (apud GALDINO, p.02), a Avaliação Institucional visa ao aperfeiçoamento da qualidade da educação, isto é, do ensino, da aprendizagem e da gestão institucional, com a finalidade de transformar a escola em uma instituição comprometida com a aprendizagem de todos e com a transformação da sociedade.

Mesmo considerando-se a importância da avaliação na busca pelo conhecimento institucional, não se pode afastar a ideiade que, por se tratar de um instrumento construído por diversos atores, está sujeita ao subjetivismo e às demonstrações de poderes, contida nas mais diversas formas de avaliar.

O real papel da autoavaliação também se torna objeto de discussão. Como parte integrante do SINAES, constata-se que os sistemas implantados nas IES devem desempenharuma função do “olhar para dentro[1]”, buscando, dessa forma, reconhecer o perfil da instituição e o significado de sua atuação: a missão; a política para o ensino; a responsabilidade social; a comunicação com a sociedade; as políticas de pessoal, as carreiras do corpo docente e do corpo técnico administrativo, seu aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional e suas condições de trabalho; a organização e gestão; a infraestrutura física, biblioteca, os laboratórios; recursos de informação e comunicação; as políticas de atendimento aos estudantes; o planejamento e a avaliação.

O resultado dessa análise servirá para impulsionar diretrizes e ações voltadas à correção de rumos, no sentido de sanear as fragilidades detectadas no processo avaliatórioe não para subsidiar ações de caráter punitivo; porém, qual o verdadeiro significado da autoavaliação no processo de avaliação institucional? A instituição pode utilizar a avaliação como um mecanismo de controle e poder? Professores não poderiam ser demitidos em função de apresentarem um baixo índice de aprovação por parte dos alunos? Dúvidas que até hoje perpassam os debates e reflexõesdo corpo docente.

Ao se considerar que a Avaliação Institucional cumpre funções as quais envolvem relações de poder e estratégias desenvolvidas por seus usuários para atingir seus objetivos (TORT, 1976), é relevante,portanto, identificarem-se os mecanismos, os quais influenciam diretamente o teor da avaliação e que impactam nos resultados auferidos e nas ações decorrentes desse processo.

 

AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: instrumento de exercício de poder e desenvolvimento de estratégias

Embora busque instrumentos norteadores da gestão educacional, ainda assim, a autoavaliação proporciona diferentes interpretações aos diversos atores participantes, pois carrega as marcas da avaliação escolar.

Essas interpretações dos instrumentos de avaliação são assinaladas pelo caráter repressivo e expressam uma relação de exercício de poder que se constituiu ao longo da trajetória escolar dos alunos e afetam suas representações sociais.

De acordo com Foucault:

A avaliação assumiu historicamente o papel de disciplinar, controlar, classificar e punir, colocando-se como instrumento para exercício do poder disciplinador inserido na escola. Práticas constritivas e repressivas são ritualizadas pela avaliação, possibilitando que o poder se instale de forma capilar, como descreve Foucault (2003), visando penetrar as consciências por meio dos corpos, dos gestos, estabelecendo a ordem e a disciplina. (FOUCAULT apud MARCONDES E SOUSA 2005, p.10)

O uso dos instrumentos de avaliação confere, portanto, ao processo de Avaliação Institucional, conclusões que nem sempre representam objetivamente aquilo que se pretende avaliar, ou seja, o objetivo para o qual o instrumento de avaliação foi criado.

Assim, Marcondes e Sousa (2005) consideram que

…a complexidade da realidade vivida nas instituições ainda aumenta em decorrência do próprio conteúdo do objeto em questão, que é a avaliação. Ela implica a ideia de julgamento de valor, de fazer um juízo da realidade para tomar decisões e nesse ato estão presentes cognição, habilidades, sentimentos e ideologias particulares. A avaliação torna-se um fundamento de valor cujo caráter ultrapassa as suas dimensões instrumentais. A avaliação institucional ocorre, portanto, num espaço de intersubjetividades em que se pode presenciar confrontos e convergências de universos de ideologias, crenças e representações que são construídas e reconstruídas, e que interferem no processo avaliativo, nem sempre se constituindo como facilitadores do mesmo. (MARCONDES E SOUSA, 2005, p.02)

Soma-se aos aspectos apontados por Marcondes e Sousa (2005), uma dimensão política que em muito supera a ideia de mera construção técnica das ferramentas de avaliação institucional como instrumentos neutros.

Segundo Dias Sobrinho (2009),

a avaliação institucional tem grande força instrumental e uma considerável densidade política. Ainda que também seja uma questão técnica, muito mais importantes são a sua ação e seu significado políticos.

É um campo de lutas e, que estão em jogo questões de fundo, pois se reconhece, ainda que nem sempre se declare, a força da avaliação institucional como ação de grande impacto na transformação da universidade, esta entendida […] como local privilegiado, legitimado e o mais competente para a formação humana…(DIAS SOBRINHO apud BARCELOS, 2009, p. 20)

Há, portanto, relações de poder e interesses que compõem o campo político da aplicação da Autoavaliação Institucional. Estas disputas colocam frente a frente alunos e professores que a utilizam na consecução de seus interesses individuais ou enquanto grupo social.

Para Dias Sobrinho(2009):

A avaliação/produção de sentidos, então é uma prática social.[…] Está carregada de valores. É intersubjetiva, no sentido de que não é propriedade privada de um indivíduo, […]pois envolve a todos numa ação solidaria e responsável.(DIAS SOBRINHO apud BARCELOS, 2008, p. 197)

O presente artigo tem como objetivo mostrar a análise das estratégias desenvolvidas pelo corpo discente e pelo corpo docente, como grupos que se confrontam nesse campo político de disputa de interesses nem sempre coincidentes. Não se pode negar um possível compromisso e boa vontade, de ambos os grupos, com a qualidade do ensino; todavia, há outras questões levadas em consideração no momento do preenchimento dos instrumentos de avaliação; como, por exemplo, o interesse dos alunos em afastar um professor muito exigente ou dos professores na manutenção de seu emprego.

Afirma Pires (2010):

Quanto mais temos interesses a defender, mais reduzida é nossa capacidade de ver as coisas tais quais são, e maior é nossa propensão a nos distanciarmos da verdade. Defende-se, assim, a necessidade de adotar voluntariamente um olhar partidário, definido em função do ponto de vista daquele ou daquela que se encontra em situação mais desvantajosa. (PIRES, 2010, p. 75)

Nesse sentido, de acordo com o contexto mercadológico, poderia o docente de uma instituição privada se sentir pressionado em relação à manutenção do emprego? O professor, assim como qualquer outro trabalhador, visa,entre outras realizações,à compensação financeira para suprir suas necessidades. O modelo de relação empresa, cliente e empregado cria o ambiente ideal para análise de Richard Sennett em a Corrosão do Caráter (2009). Para tal autor, o capitalismo vive um novo momento, caracterizado por uma natureza flexível e atacando as formas rígidas da burocracia, as consequências da rotina exacerbada e os sentidos e significados do trabalho. Tal situação gera grande ansiedade nas pessoas, que não sabem os riscos que estão correndo e a que lugar poderão chegar, colocando em teste o próprio senso de caráter pessoal.Textualmente, afirma Sennett (2009):

O termo caráter concentra-se, sobretudo, no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro. Da confusão de sentimentos em que todos estamos sem algum momento em particular, procuramos salvar e mantera lguns; esses sentimentos sustentáveis servirão a nossos caracteres. Caráter são os traços pessoais a que damos valorem nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. (SENNET, 2009, p.10)

Em suas reflexões, Sennett (2009) apregoa:

Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato?Como se podem buscar metas de longo prazo numa economia dedicada ao curto prazo? Como se podem manter lealdades e compromissos mútuos em instituições que vivem sedes fazendo ou sendo continuamente reprojetadas? (SENNETT, 2009, p. 10-11)

Como se sabe, o professor é também um funcionário, e frente aos dilemas apontados por Sennett, é factível considerar que o docente adote, pelo menos eventualmente, estratégias visando não somente a busca pela melhor prática pedagógica, mas também a manutenção de seu vínculo empregatício com a Instituição; sobretudo, ao se considerar a sala de aula como um campo no qual agentes sociais (docentes e discentes) se relacionam cada um em sua posição social.

Inicialmente, para melhor entendimento a respeito da proposição deste artigo, buscou-se o aporte de Pierre Bourdieu acerca de campo social:

Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação, homologia etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade especifica e irredutíveis às que regem os outros campos. Por exemplo, o campo, artístico, o campo religioso ou o campo econômico obedecem a lógicas diferentes (BOURDIEU apud BONNEWITZ, 2005, p. 60)

As posições sociais de alunos e professores, no interior do campo, estão atreladas fundamentalmente às questões ligadas aos interesses individuais e de cada grupo social; assim sendo, podem surgir, ao longo das situações normalmente consideradas como exclusivamente de aprendizagem, divergências e conflitos entre os grupos e/ou indivíduos envolvidos nesta relação; portanto, evidencia-se a possibilidade de existência de estratégias nos dois segmentos apresentados, alunos e professores na defesa da consecução de seus interesses frente a situações de conflito.

Setton (2002), ao se referir à composição das formações sociais modernas, afirma que:

[…] o processo de socialização das formações modernas pode ser considerado um espaço plural de múltiplas relações sociais. Pode ser considerado um campo estruturado pelas relações dinâmicas entre instituições e agentes sociais distintamente posicionados em função de sua visibilidade e recursos disponíveis. Salientar a relação de interdependência entre as instâncias e agentes da socialização é uma forma de afirmar que as relações estabelecidas entre eles podem ser de aliados ou de adversários. Podem ser relações de continuidade ou de ruptura. Podem, pois, determinar uma gama variada e heterogênea de experiências singulares de socialização. (SETTON 2002, p.60)

Exercer a docência não é tarefa fácil, principalmente no atual momento da educação no Brasil. É notória a existência de problemas em todos os níveis antecessores do Ensino Superior, cujos discentes se apresentam a cada ano com base mínima de conhecimentos adquiridos ao longo do Ensino Fundamental e Médio; haja vista, a defasagem nos conceitos básicos de matemática e física dos candidatos ao curso de Engenharia.

Em conversas informais com docentes, facilmente encontram-se relatos a respeito da dificuldade de aprofundar os conteúdos em detrimento à ausência dos conhecimentos, os quais deveriam compor o capital cultural adquirido pelos alunos.

Não se tem a intenção de atribuir responsabilidades, sequer relacionar, em vista das dificuldades perenes, conflitos entre professores e alunos; ao contrário, a ilustração ocorre com frequência, por isso, é pertinente compreender possíveis conflitos ou descontentamentos expressos no momento da autoavaliação.

Uma vez definidos os agentes sociais e o campo, necessário se faz o entendimento das regras, explícitas ou não; a pretensão e as estratégias adotadas na busca daquilo que se julga objeto do seu interesse. Conforme Bourdieu, “cada campo confina assim os agentes a seus próprios móveis de interesse… “(BOURDIEU, 2001, p.117).

A partir das premissas acima, verificam-se as aspirações de cada agente em relação ao que se deseja. Como o cerne da questão versa sobre a relação docente e discente, não se pode deixar de observar que, em termos gerais, embora ambos busquem a mesma finalidade (um ensinar e outro aprender), existem entre eles situações potencialmente conflituosas. Dessa forma, para o docente lograr êxito é necessário bem mais do que o exclusivo domínio de conteúdos ou utilização de práticas pedagógicas de sucesso.

Assim como entre o emissor e o receptor, o meio pode intervir e produzir ruídos na decodificação da mensagem, pois lecionar envolve questões, as quais não se limitam à ação docente; se por um lado, problemas nas instalações físicas, nas dimensões das salas de aulas, na acústica e quantidade de alunos interferem no desempenho docente; por outro, o nível de dificuldade da disciplina e as práticas avaliativas se associam ao comportamento desinteressado do discente, em dissonância, portanto, com os objetivos do Ensino Superior.

Segundo Bourdieu (1989),

[…] as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material e simbólico acumulados pelos agentes. (BOURDIEU, 1989, p.11)

Por isso, é normal que ocorra a disputa pela legitimação do poder simbólico, conforme afirma Bourdieu (1989).

O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo em que Durkheim chama de o conformismo lógico, que quer dizer “uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências” (BOURDIEU, 1989, p.9)

Tendo em vista que a sala de aula é um campo no qual se encontram posições antagônicas entre os diversos atores, os quais desejam legitimar suas posições, é comum o surgimento de estratégias, cujos objetivos tendam à dominação ou à consecução das finalidades de cada grupo social ou dos indivíduos.

Ao se observar a avaliação institucional sob a ótica de um jogo de poderes, pode-se questionar a validade prática do jogo? Como se comportaram seus “jogadores[2]”? Quais são as regras explícitas ou implícitas? O que se pode considerar como vitória nesse jogo?

No primeiro momento, é preciso pensar, de acordo com Bourdieu (2004), nas relações no interior de campo, como uma situação em que está “em jogo um conjunto de pessoas que …participa de uma atividade regrada, uma atividade que sem ser necessariamente produto de obediência à regra, obedece acertas regularidades” (BOURDIEU, 2004. p.83). Tal afirmação associa-se à autoavaliação, pois embora a única regra seja o avaliador realizar a avaliação com o máximo possível de coerência em relação aos questionamentos propostos, não se pode afirmar com veemência que seja atendida. De acordo com os preceitos de Bourdieu (2004):

O jogo é um lugar de uma necessidade imanente. Nele não se faz qualquer coisa impunimente […] Quem quiser ganhar nesse jogo, apropriar-se do que está em jogo […] e as vantagens a ele associadas deve ter o sentido do jogo. (BOURDIEU, 2004, p.83)

Em se tratando de avaliação institucional, as estratégias podem ser usadas na busca de subverter a regra habitual do jogo, com a intenção, bilateral, de minimizar efeitos danosos ou meritórios.

Essa dinâmica de conveniência é discutida por Bourdieu (2004):

A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe (recorrendo, por exemplo, à noção de inconsciente). Mas pode-se recusar ver a estratégia como o produto de um programa inconsciente, sem fazer dela o produto de um cálculo consciente e racional. Ela é o produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido… (BOURDIEU, 2004, p.81)

De acordo com a concepção de autoavaliação e as relações entre os partícipes, deve-se considerar certa relativização de seu uso como instrumento de mensuração de desempenho docente, uma vez que não é possível extrair informações fidedignas, as quais reflitam o retrato institucional.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este Artigo trouxe à luz da Academia as discussões a respeito da autoavaliação Institucional e as relações entre os protagonistas desse instrumento. Ao longo do processo avaliativo e, consultados os teóricos em avaliação, foi possível apreender e apontar a importância da conscientização dos envolvidos como fator fundamental para o sucesso da avaliação institucional.

Se por um lado, há convergências conceituais entre os estudiosos e teóricos abordados nesta investigação acerca da necessidade premente das IES relevarem a qualidade de ensino, por meio da autoavaliação; por outro, encontram-se também convergências entre eles sobre a fragilidade do sistema de avaliação, conforme se constatou ao longo deste trabalho.

Em seu conjunto, os processos avaliativos devem constituir um sistema, o qual permita integrar as diversas dimensões da realidade avaliada; assegurar as coerências conceituais, epistemológicas e práticas, bem como atingir os objetivos dos diversos instrumentos e modalidades.

É oportuno frisar que o processo autoavaliativo não se presta à função de controle e fiscalização para, em virtude disso, ampliar o papel do Estado na Instituição.  Essa inclinação para o controle e para a regulação é inerente ao poder; contudo, a resistência dos atores-sujeitos (principalmente, professores) ao processo avaliativo advém, provavelmente, do caráter punitivo, historicamente construído, o qual dificulta sobremaneira o estabelecimento, nas instituições de ensino superior, de uma conscientização da importância da autoavaliação.

A participação anônima no processo de Avaliação Institucional dificulta a comprovação de hipóteses, pois se torna impossível identificar e entrevistar os discentes que apresentaram discrepância em suas avaliações; porém, ao analisar as atas e relatórios de CPA, além da própria vivência como docente e sujeito avaliado, apontam-se situações interferentes no processo: grau de dificuldade da matéria lecionada, nível de exigência do docente, nível de interesse dos discentes, proximidade entre a avaliação e o período de provas e, finalmente, a inexistência de uma prática avaliativa.

Durante a sensibilização pró-avaliação, presenciaram-se conversas entre os discentes sobre represália a professores por meio do instrumento avaliador.

Tal conduta não é apenas uma prerrogativa discente, uma vez que se trata de um binômio (avaliador e avaliado); logo, o inverso deve ser considerado, ou seja, a empatia com a classe pode também descaracterizar os resultados.

A avaliação interna ou autoavaliação é uma ferramenta importante à disposição do gestor, pois seu resultado desvela os pontos frágeis e aponta os aspectos positivos, permitindo, dessa forma, o monitoramento e o planejamento das ações necessárias à melhoria da instituição. Como se disse, a ampla participação no processo da autoavaliação ainda é um problema a ser resolvido, pois a resistência, principalmente dos professores, consiste no caráter punitivo de seus resultados. Na análise dos dados coletados, não foram desconsideradas as fragilidades existentes em um processo, cujos atores podem ser avaliadores e avaliados, e, que, invariavelmente, colocam-se como agentes ocupantes de lugares distintos em um campo comum.

Finalmente, ressalta-se o envolvimento complexo da Avaliação Institucional, no que tange ao tratamento e à utilização dos resultados coletados. Estes devem implicar na busca de qualidade e eficiência do ensino superior; nunca em instrumento de controle e regulação tanto dos processos de avaliação externa quanto da autoavaliação, embora tal prática seja inerente ao jogo de poder e à realização das estratégias dos agentes envolvidos neste processo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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 [1] Grifos nossos.

[2] Grifos nossos.

JOSÉ DE ALENCAR E A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

JOSÉ DE ALENCAR E A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

JOSÉ DE ALENCAR AND BRAZILIAN LINGUISTIC IDENTITY

MÁRCIA MENDES PIMENTA

Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP
UNIBR – Faculdade de São Vicente
marciampimenta@hotmail.com

RESUMO

Colônia portuguesa durante três séculos, o Brasil adentrou o século XIX ávido por libertar-se não apenas politicamente da antiga Metrópole, mas de tudo o que lhe lembrasse o jugo por ela imposto. Os ideais nacionalistas encontraram aqui ambiente propício: recém-constituída, a nação brasileira orientava-se no sentido da afirmação de uma identidade cultural nacional. A língua, herança do colonizador, já apresentava elementos que a diferenciavam do padrão lusitano, configurando um uso típico por parte da comunidade brasileira no nível da oralidade, porém ausente na língua escrita, ainda presa às normas portuguesas. Este trabalho adota um enfoque histórico-linguístico, por meio do qual é possível verificar os fenômenos de mudança linguística, de inovação e adoção de um uso específico pela coletividade. O caráter histórico e social da língua possibilita-lhe expressar as marcas que caracterizam o homem e seu tempo. No caso de José de Alencar e “O Tronco do Ipê”, essas marcas refletem a identidade linguística e cultural brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Nacionalismo linguístico. Mudança linguística. Identidade linguística brasileira.

 

ABSTRACT

Portuguese colony for three centuries, Brazil entered the nineteenth century eager to liberate not only politically the old metropolis, but everything that reminded the yoke imposed by it. The nationalist ideals found here favorable environment: newly constituted, the Brazilian nation was oriented towards the affirmation of a national cultural identity. The language, colonizer heritage, had already elements that differentiated it Lusitanian standard, configuring a typical use by the Brazilian community in terms of orality, but absent in the written language, still attached to the Portuguese standards. This research adopts a historical-linguistic approach, through which it’s possible to check the language change phenomena, innovation and adoption of a specific use by the community. The historical and social character of language enables it to express the marks that characterize the man and his time. In the case of José de Alencar and “O Tronco do Ipê”, these marks reflect Brazilian linguistic and cultural identity.

KEYWORDS: Linguistic nationalism. Language change. Brazilian linguistic identity.

 

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre a língua em uso no Brasil salientam sua importância como manifestação espontânea e genuína da cultura brasileira. Orientam-se no sentido de destacar uma identidade linguística que corresponda a uma identidade cultural própria, nacional. Procuram realçar a historicidade da realidade linguística do Brasil, especialmente no que se refere aos falares do povo e à relação entre a oralidade e a escrita.

Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior. Inicialmente, a concepção da identidade brasileira foi no sentido de oposição ao colonizador, desviando-se da imitação para a originalidade. Há, porém, uma dimensão interna no processo de identificação: dizer que algo é diferente não basta; é necessário mostrar em que se identifica.

O movimento romântico tentou construir um modelo de ser nacional, embora não tenha discutido o problema de forma mais abrangente. Ocupou-se da fusão do índio (idealizado) com o branco, mas deixou de lado o negro, até então destituído de qualquer cidadania; a ideologia de um Brasil mestiço só começou a forjar-se no final do século XIX. De qualquer forma, procurou uma expressão linguística que refletisse a realidade social de sua época e que correspondesse a uma busca da identidade.

Foi a partir desse século, que a posição do escritor e a receptividade do público foram decisivamente influenciadas pelo fato de a literatura brasileira ser encarada como veículo para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasilidade. O artista começou a tomar consciência de si mesmo como cidadão, em conexão estreita com o nacionalismo vigente na sociedade brasileira da época.

A língua só significa na história, vista não só como cronologia ou evolução, mas como fatos que reclamam sentidos. Não é tão somente um instrumento; é também um trabalho humano e, por conseguinte, um trabalho histórico-social. A historicidade do homem coincide com a historicidade da língua, no sentido do diálogo, do falar com outro, como também no de falar como outros, historicamente determinado. Aí reside a dinamicidade da língua, que está em perpétuo movimento e transformação, para se adaptar às necessidades expressivas dos usuários e continuar funcionando como tal.

O problema da mudança linguística é sempre um problema histórico, pois depende do conhecimento das condições da língua estudada e do momento particular em que ela é considerada. Sob esse enfoque histórico, pode-se verificar os fenômenos de mudança da língua e caracterizá-los no tempo e no espaço dentro de uma determinada época, o que permite relacionar os acontecimentos e as circunstâncias que condicionam o homem e a sociedade.

Considerando-se que a língua e os instrumentos linguísticos são objetos históricos intimamente ligados à formação do país, da nação, do Estado, não se pode desconhecer que a noção de nação, no Brasil, a partir do final do século XVIII, tem como ponto essencial de sua identidade a questão da língua nacional. Conforme as palavras de Guimarães & Orlandi (1996):

Nesta história, é crucial a questão da língua nacional, ou seja, a língua  que  funciona no Brasil  e que,  por  suas especificidades, faz parte do processo de constituição da nacionalidade. (GUIMARÃES &ORLANDI, 1996, p.9)

Sabe-se que a língua em uso no Brasil é, essencialmente, a Língua Portuguesa. Não mais se sustentam hoje as posições que consideravam a língua do Brasil ora um dialeto do Português, ora uma língua autônoma, derivada do Português. Segundo Coseriu (1979 a), a um sistema linguístico podem corresponder várias normas, decorrentes de usos coletivos específicos que privilegiam certos empregos.

Assim, ao lado do sistema funcional, há que distinguir a realização normal – da norma – que também caracteriza as línguas. Sistema e norma não são realidades autônomas e opostas ao falar, nem mesmo aspectos do falar, mas formas que se comprovam no próprio falar, elaboradas sobre a base da atividade linguística concreta. A norma é a realização coletiva do sistema; o falar (uso) é a realização individual-concreta da norma.

O Português do Brasil corresponde a um uso típico, por parte de toda a comunidade brasileira, por meio de uma diferenciação gradativa, já consistente no século passado e hoje indiscutível, a partir do nível da oralidade e atualmente também presente na língua escrita. A língua usada no Brasil, na sua modalidade escrita, caracteriza a vigência do modelo português, até praticamente meados do século XIX; a partir daí, documenta as tentativas ocasionais de cunhar padrões próprios, que acabariam por fixar-se. Nos textos dos escritores dessa época e na ausência de documentação direta, evidencia-se a diferenciação progressiva da variante linguística brasileira em relação à portuguesa. Todo esse material contribuiu para atestar a constituição do uso brasileiro, já emergente na língua escrita. Isto só ocorreria quando, por volta da metade do século, os românticos começaram a entrever a existência da variante brasileira e a empreender a defesa de seu suposto direito a uma expressão literária própria.

A questão da língua preocupou particularmente os escritores e os filósofos do século XIX. Só depois da Independência surgiu uma geração sem preconceitos, que compreendia já não ser necessária ou obrigatória a dependência dos padrões da ex-metrópole e entendia ser possível constituir-se uma cultura própria, resultante de ambiente próprio.

Alguns escritores da época, além de reivindicarem certo grau de liberdade em face das prescrições gramaticais e dos modelos linguístico-literários portugueses, também prezavam a espontaneidade da expressão e deixavam entrever traços de oralidade em seus textos. Destaca-se nessa posição José de Alencar que, além de documentar em seus escritos alguns aspectos do uso linguístico brasileiro, também polemizou a esse respeito, permitindo, assim, que se conhecesse o pensamento crítico de seu tempo.

Por sua relevância como escritor, José de Alencar tem sido tomado como símbolo do pensamento romântico sobre a língua em uso no Brasil. Quando da publicação de “Iracema”, em 1865, foi alvo de críticas do escritor português Pinheiro Chagas e de outros críticos dos dois países, que o acusaram de escrever numa língua incorreta, tendo com ele mantido conhecidas e públicas polêmicas.

Na realidade, a tese de Alencar envolvia o direito a uma maior liberdade de estilo e de expressão. Um dos pilares do pensamento alencariano, que o eleva entre seus contemporâneos, independentemente de suas qualidades de romancista, é a profunda consciência da missão específica do artista, de mediador entre a língua falada e a literária.

É nessa problemática que se situa o presente trabalho: direciona-se no sentido do estudo do nacionalismo linguístico emergente no século XIX, da questão da língua como elemento decisivo para a definição da brasilidade, da luta de Alencar pelo direito à expressão linguística brasileira. Serão destacados do romance “O Tronco do Ipê” alguns exemplos das marcas linguísticas que evidenciam o uso brasileiro da língua portuguesa, configurando a busca da identidade linguística e cultural, dentro do processo de constituição da nacionalidade.

 

O ROMANTISMO E O NACIONALISMO LINGUÍSTICO

 Quando foi declarada a independência política do Brasil, em 1822, a Europa estava em pleno Romantismo. As ideias novas, vitoriosas desde a Revolução Francesa, haviam criado no plano estético um amplo movimento de repúdio à rigidez dos padrões clássicos e de incentivo à liberdade, como reflexo da ideologia liberal. Era um espírito renovador que se impunha.

Os artistas, em sua ânsia de atingir um ideal, entravam em conflito com o utilitarismo burguês. Assim, buscavam inspiração em temas da Idade Média, que viam como um tempo heroico, ou refugiavam-se na torre de marfim do isolamento, nas atitudes escapistas, enfim. A esse conflito, chamavam mal du siècle.

As manifestações românticas de evasão eram menos do rigor das regras clássicas do que da falsa liberdade baseada na propriedade burguesa e na divisão do trabalho capitalista; menos dos sonhos de juventude que de uma sociedade conservadora e tradicional, que barrava o caminho a ambições novas. A geração romântica é a das ilusões perdidas, do desencanto. Seu culto do eu nasceu mais de uma tomada de consciência crítica do que de um egocentrismo complacente.

A oposição existente entre o mundo imaginado e o mundo real gerou o caráter contraditório do Romantismo: simplicidade popular e refinamento individualista, tendências conservadoras e germes revolucionários, brando lirismo e ironia amarga, devoção e orgulho. Essa dicotomia também explica duas posturas do artista romântico frente à realidade: a fuga a ela ou a tentativa de atuar ativamente em sua modificação. A primeira levou-o a se aproximar da natureza e a se tornar adepto do bon sauvage de Rousseau, o homem puro antes de ser contaminado pela sociedade; a segunda levou-o a participar dos movimentos de libertação, numerosos na época. Alguns lutaram pela formação do Estado nacional; outros, como Gonçalves Dias e José de Alencar no Brasil, reivindicaram a originalidade do nacionalismo linguístico.

De acordo com Costa (1956), o Brasil não deixou de ser uma colônia sem lutas. Só que essas lutas não significaram um avanço no que diz respeito à libertação dos padrões culturais europeus. A instalação dos primeiros cursos jurídicos em nível superior e o aparecimento da imprensa periódica, ausentes no período colonial, foram os fatos mais importantes para o desenvolvimento de uma consciência intelectual. Mesmo assim, essa consciência não correspondia a um real desenvolvimento da sociedade.

Silva Neto (1976) afirma que, até meados do século XIX, nossos escritores e colaboradores de jornais procuravam imitar na língua escrita os modelos portugueses. Havia como que uma vergonha do registro do uso brasileiro, uma tendência para considerar “erros” as suas particularidades ou suas divergências do uso lusitano.

Apesar de uma mudança na vida material e intelectual do Brasil a partir de 1850, havia um clima de imitação dos modelos europeus, nos costumes como nas artes, conforme as informações dadas por F. Alencar (1985):

A vida artística restringia-se à Corte do Rio de Janeiro, onde  os  espetáculos   teatrais  eram  apresentados (geralmente peças estrangeiras em francês) e pouco sobrava para os autores nacionais. Nos salões da aristocracia fluminense, dançava-se a modinha, a última canção francesa ou italiana da moda. E isso correspondia aos hábitos da vida urbana que essa classe em ascensão, à sombra do Império, cultiva. Uma estética de imitação. Ainda faltava muito para a independência cultural do Brasil. (F. ALENCAR, 1985, p.133):

Deve-se salientar que, com a vulgarização do ensino e com o desenvolvimento da imprensa, classes sociais menos dotadas culturalmente tiveram oportunidades novas e acesso à literatura, contribuindo inclusive para esta última. Para isso, foram importantes as novas condições criadas pela independência política, bem como o Romantismo, com a valorização da estética do nacional e do popular. Os escritores começaram a adquirir consciência de si mesmos como cidadãos; eram já de uma geração que havia feito seus estudos superiores no Brasil, afastados da influência cultural de Coimbra e de Lisboa. O ideal nacionalista e democrático do movimento não poderia deixar de refletir-se na forma de expressá-lo: a língua.

Depois da independência política, tentava-se conseguir a independência cultural, ou ao menos, maior liberdade de expressão linguística. No processo de consolidação de uma nacionalidade, de acordo com Rémond (1974), é comum que se fixe um elemento unificador que torne visível a nação. Tanto a língua, como a raça e a religião podem servir a essa tarefa. Procurava-se na época a adequação entre a língua e um modo de ser da língua que proporcionasse a visibilidade do caráter do brasileiro e que definisse a identidade do país frente a Portugal. Como a língua do Brasil era a mesma do ex-colonizador, tentou-se buscar nas especificidades do uso brasileiro o traço distintivo marcante da identidade cultural da brasilidade.

Várias manifestações sobre a natureza da língua em uso no Brasil começaram a surgir desde o fim do primeiro quartel do século XIX. O mais antigo texto conhecido que apresenta a diferenciação da língua no Brasil remonta a 1824-1825: deve-se ao Visconde de Pedra Branca, Domingos Borges de Barros, e faz parte da Introdução ao “Atlas Etnográfico do Globo”, de Adrien Balbi. Foi escrito em francês, com o subtítulo “Brasileirismos” e, sem conotação nacionalista ou ideológica, relaciona uma lista de palavras que mudaram de sentido no Brasil, assim como de algumas desconhecidas em Portugal, empréstimos indígenas e africanos.

O texto do Visconde de Pedra Branca deu início à questão da língua brasileira, tema este que não mais deixou de ser tratado na cultura brasileira, estendendo-se por todo o século XIX até o XX e envolvendo inúmeros literatos e críticos. Em 1860, MACEDO SOARES (apud PIMENTEL PINTO, 1978: XXII), censurando a ausência do léxico brasileiro na língua jornalística e propondo o aproveitamento desse léxico na língua literária, proclama: “Já é tempo de os brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal”.

A reivindicação da liberdade de expressão, relativa à de Portugal, começava apenas a delinear-se como implicação nacionalista. Com efeito, o debate em torno da língua traz a discussão sobre a significativa e constante questão da identidade nacional na história da cultura brasileira.

Em 1857, Brás da Costa Rubim publicara o “Vocabulário Brasileiro para servir de complemento aos dicionários de língua portuguesa”. Em 1870, dá-se a célebre polêmica entre José de Alencar e o português Pinheiro Chagas; este último fizera críticas à linguagem de Alencar em “Iracema”, referente ao uso de neologismos e de algumas construções gramaticais: emprego do artigo, omissão do reflexivo em alguns verbos, colocação de pronomes pessoais. Alencar respondeu-lhe num pós-escrito na segunda edição de “Iracema”.

José de Alencar polemizou também com outros críticos a respeito do uso da língua em seus escritos: Antônio Henriques Leal, Franklin Távora, José Feliciano de Castilho e Joaquim Nabuco. As referidas polêmicas tinham como ponto essencial o uso brasileiro da língua portuguesa e o direito do escritor à liberdade de estilo, a não submissão aos modelos portugueses.

Em 1881, aparece a “Gramática Portuguesa” de Júlio Ribeiro, a primeira a ser publicada no Brasil. Apesar de seguir ainda as normas lusitanas, propõe-se ser uma exposição dos usos da língua, inclusive os brasileiros; distancia-se da influência direta de Portugal e inicia a gramatização brasileira.

Desde essa época, intensifica-se a tendência de documentar a realidade linguística brasileira a partir da observação de fatos fonológicos, léxicos e sintáticos, de Macedo Soares a críticos e gramáticos como Sílvio Romero, José Veríssimo, João Ribeiro e outros. É bem verdade que o final do século XIX e início do XX são dominados pelo purismo em matéria linguística, o qual preconizava a fidelidade aos modelos dos grandes escritores portugueses do passado e a rigidez na observância das normas gramaticais lusitanas.

A mentalidade criada sobre uma suposta superioridade da civilização europeia parece ter raízes no complexo do colonizado, na ideia de atraso cultural em relação ao colonizador. De acordo com Cunha (1968), à proporção que o colonizado é educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imitar a este. O colonizador é sujeito, ao passo que o colonizado é objeto. Dentro dessa perspectiva, o colonialismo impõe aos países colonizados uma dupla dominação: ela é exploração econômica das matérias-primas e importação de produtos acabados, mas sobretudo dominação cultural. No dizer de Cunha (1998),

A ideia de que só a Europa possuía as matrizes da cultura era tão aceita que, quando o instinto de nacionalidade passou a revelar-se na pena de José de Alencar, o fato se revestiu das características de escândalo literário e o grande romancista se viu impiedosamente criticado pelos próprios compatriotas. (CUNHA ,1998, p. 14)

As primeiras críticas a Alencar, entretanto, não eram pela sua temática, pois o Indianismo foi bem acolhido; o mito do bom selvagem era providencial, capaz de trazer ao brasileiro, ainda vinculado ao gosto europeu, o que lhe faltava: a nobreza de origem, as raízes, a tradição. Criou-se, na literatura de ficção e na poesia, um mito a que se deu o nome de Indianismo, que era uma idealização das qualidades e da pureza dos primeiros habitantes do Brasil.

O que não era admitido por alguns dos contemporâneos de Alencar era a tentativa de independência linguística, a aceitação de um uso diferente do Português europeu, o reconhecimento de um estilo próprio e original.

Desse modo, o Romantismo, tendo por base o nacionalismo, levou alguns escritores não apenas a exaltar a sua terra, mas a considerar suas obras como contribuição à tarefa de construir uma literatura nacional, trabalhando a língua em uso no Brasil e adequando-a a uma realidade própria, brasileira, como parte do processo de constituição da nacionalidade. No entanto, a apropriação da linguagem brasileira pela literatura só se completou realmente no século XX, com os escritores modernistas.

A noção de nação, desde o final do século XVIII e principalmente após a Independência, tem, portanto, como ponto fundamental de sua identidade a questão da língua nacional, ligada à da identidade cultural.

 

LÍNGUA E HISTÓRIA

Como todos os produtos da cultura humana, a língua não poderia deixar de ser “um objeto de contemplação histórica”, conforme as palavras de PAUL (1983, p.13), isto é, ela deve ser estudada por uma ciência que aborde os fatores regulares e determinantes da sua mudança. Como a noção de mudança é estranha às ciências exatas, a história da língua se enquadra nas ciências culturais históricas.

 A mudança linguística

Paul (1983, p.18) observa ainda que “a ciência cultural é sempre uma ciência social. Só a sociedade possibilita a cultura, só a sociedade torna o homem um ser histórico”. Cada criação linguística é transmitida e transformada por indivíduos, e sempre que esse processo se repete, dá-se a ação sucessiva de diferentes indivíduos, sem a qual não se pode imaginar qualquer cultura.

Não é possível refletir seriamente sobre uma língua sem se pesquisar quais foram as mudanças ao longo da história. Ao se explicar uma mudança linguística, verifica-se que ela é consequência de um processo histórico. Apesar de fatores externos de instabilidade e fatores internos de resistência, deve-se entender a mudança não como simples modificação, mas como contínua reconstrução do sistema. Segundo Coseriu (1979 b, p.237), “a língua se faz mediante a mudança e morre como tal quando deixa de mudar”.

A pretensa contradição do sincrônico – funcionamento da língua – e do diacrônico – mudança linguística – pode ser resolvida se a língua for entendida como energeia, no sentido de Humboldt (apud COSERIU, 1982, p.22): “Ela própria [a língua] não é produto – ergon – mas uma atividade – energeia”. Desse modo, uma língua não é uma coisa feita, acabada, mas um conjunto de modos de fazer, um sistema de produção realizado historicamente.

Depois da publicação, em 1916, do “Curso de Linguística Geral” de Ferdinand de Saussure, passou a ser corrente a distinção entre sincronia e diacronia. Na dimensão estática, chamada sincrônica, o centro das atenções são as características da língua vista como um sistema estável num espaço de tempo; na dimensão histórica, chamada diacrônica, são as mudanças por que passa uma língua no tempo. Embora não negasse uma certa interdependência entre sincronia e diacronia, Saussure privilegiou os estudos sincrônicos, que para ele seriam os estudos da língua por excelência.

Coseriu (1979 b, p.229) posicionou-se contra a visão estática de sistema formulada por Saussure e propôs que se visse a língua como um sistema em movimento, em permanente sistematização; assumiu o ponto de vista de que as línguas são objetos históricos e que por isso seu estudo deve envolver descrição e história de forma integrada: “a língua funciona sincronicamente e é constituída diacronicamente”.

A mudança depende da sucessão e da combinação da iniciativa individual com a aceitação coletiva. Tudo aquilo que se afasta dos modelos existentes na língua do falante pode chamar-se inovação; a aceitação de uma inovação por parte do ouvinte é uma adoção. Essa inovação pode ser: alteração de um modelo tradicional; seleção entre variantes existentes; criação sistemática; empréstimo de outra língua; economia funcional, entre outros. Entretanto, inovação não é mudança.

Enquanto a inovação é um ato de fala, pois pertence à utilização da língua, a adoção é um fato de língua, transformação de uma experiência em saber, um ato mental de aquisição, modificação ou substituição de um modelo linguístico. “Toda mudança é, originalmente, uma adoção” (COSERIU, op. cit.: p.72). A mudança pertence à essência da língua; por isso, estudá-la não significa estudar alterações ou desvios, mas a consolidação de tradições linguísticas.

As modificações na estrutura da sociedade não se refletem como tais na estrutura interna da língua, pois não se trata de estruturas paralelas. A estrutura da sociedade corresponde à estrutura externa da língua, à sua estratificação social. Segundo Coseriu (1979), ela determina a rapidez ou a lentidão das mudanças, mas o social é um fator indireto na mudança linguística, na medida em que implica variedade e hierarquização do saber linguístico.

Norma e uso linguístico

Coseriu (1979 a) substituiu a dicotomia saussuriana langue e parole pela divisão sistema, norma, fala. O sistema é a língua abstrata, um conjunto de oposições funcionais, realizável em formas socialmente determinadas e mais ou menos constantes, que constituem a norma. Esta é a realização coletiva do sistema. Os dois conceitos recobrem a noção saussuriana de langue. A fala é a realização individual, concreta da norma, implicando a originalidade expressiva dos falantes; corresponde à parole saussuriana. No dizer de Coseriu (1979):

O sistema abrange as formas ideais de realização de uma  língua;  a  norma,  os  modelos  já  realizados historicamente. O sistema representa a dinamicidade da língua, o seu modo de fazer; a norma corresponde à fixação da língua em moldes tradicionais, representando o equilíbrio sincrônico do sistema. (COSERIU, 1979, b, págs. 50-51)

O sistema contém as oposições funcionais, isto é, os traços distintivos necessários para que uma unidade da língua não se confunda com outra. A norma contém tudo o que é tradicional, comum e constante. O sistema e a norma de uma língua funcional refletem a sua estrutura.

O sistema admite uma infinidade de realizações sem que, com isso, se alterem as condições funcionais da língua. A norma se impõe ao indivíduo, limitando sua liberdade expressiva, restringindo as possibilidades oferecidas pelo sistema. A norma de uma língua representa seu equilíbrio externo, isto é, social, entre as várias realizações possíveis e, simultaneamente, o seu equilíbrio interno. O sistema indica as possibilidades, os caminhos abertos e os fechados de um falar numa comunidade; a norma, as realizações obrigatórias e consagradas: não corresponde ao que se pode dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se diz numa comunidade.

O falante domina o sistema de uma língua quando está em condições de criar nela. O distanciamento entre sistema e norma de realização se manifesta quando a “criação” à luz do sistema inexiste na norma, na tradição já realizada e, por isso, não se encontra registrada nos dicionários e nas gramáticas.

Jespersen (1947, p.12) ressalta a importância da coletividade na aceitação da norma e, consequentemente, no estabelecimento do que é considerado correto em matéria linguística: “Y es esta comunidad lo que determina qué es lo correcto linguisticamente en lo que se dicen”.

Os falantes tendem, muitas vezes, a desenvolver uma atitude negativa em relação às mudanças, entendendo-as como uma degeneração ou decadência. Ora, estas ocorrem por meio de “erros” ou transgressões da norma, isto é, contra o uso que até aquele momento havia sido considerado correto. No dizer de Jespersen (1947),

A esta luz podemos comprender la aparente paradoja e que la evolución linguística se produce a través de una serie de constantes “errores” o pecados contra lo que hasta el momento há sido considerado uso correcto. (JESPERSEN 1947, p.177),

Dessa forma, o individual e o social interpenetram-se. As palavras, pronunciadas por uma só pessoa, não sobreviveriam. Todo indivíduo aprende e modifica a sua língua em contato com uma série de outros indivíduos. A aprendizagem da língua está condicionada ao meio social a que o indivíduo pertence; essa é a linguagem transmitida, depois da qual vem a linguagem adquirida, que a criança vai aprender na escola, onde entra em contato com o material linguístico que as gerações mais antigas legaram em suas obras.

Embora não exista correspondência nem de natureza nem de estrutura entre os elementos constitutivos da língua e os da sociedade, afirma Benveniste (1989, p. 97-98) que “a língua é o interpretante da sociedade” e que “a língua contém a sociedade”.

O que atribui à língua a posição de interpretante é o fato de ser ela o instrumento de comunicação comum a todos os membros da sociedade. A sociedade humana está apta a se diferenciar ou a evoluir constantemente, mas a língua permanece capaz de registrar e designar as mudanças sociais, as novidades e técnicas produzidas, pois nenhuma destas mudanças age diretamente sobre sua própria estrutura. O sistema linguístico muda muito lentamente, não sendo as mudanças percebidas sincronicamente.

Dentro desse prisma, cada grupo social, em determinada época, possui formas de expressar sua visão de mundo e sua realidade. Em meio à extrema diversificação social, a língua exerce um poder de coesão que transforma em comunidade um conjunto de indivíduos; ela é uma identidade que une diversidades individuais. A comunidade seria, assim, possuidora não só de uma língua, mas de um repertório, uma série de recursos comunicativos, cada um deles com uma adequação e uma significação própria. A língua diz algo sobre a visão de mundo e os valores culturais da sociedade da qual ela faz parte.

Nas lutas por identidade, emancipação e supremacia do século XIX, a língua deixou de ser apenas um meio de comunicação, tornando-se o veículo do espírito coletivo. O Romantismo, especificamente, tentou validar as línguas nativas e os falares populares, desenvolvendo a afirmação de que a língua era um tipo de história e identidade cultural coletiva.

 

ALENCAR E A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Por sua importância como romancista, Alencar tem sido tomado como símbolo do pensamento romântico sobre a língua no Brasil. Na época em que o escritor fez sua formação intelectual, era forte o sentimento anti-português; era natural esse estado de espírito, já que nossa independência datava de tão pouco tempo.

José de Alencar nasceu em Mecejana, no Ceará, em 1º de maio de 1829. Seu pai teve evidência política e vigorosa participação na história do Império, deixando ao filho a herança do sentimento nativista e revolucionário. Em 1846, o jovem matricula-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde se formaria em 1850. Vai para o Rio de Janeiro trabalhar como advogado, iniciando-se no jornalismo em 1853, no Correio mercantil, onde escreve folhetins. Em 1856, é publicado, em folhetim, “Cinco Minutos”; em 1857, “A Viuvinha” e o romance “O Guarani”, que lhe trouxe a glória da consagração e a receptividade popular, elevando-o à posição de superioridade na nascente literatura brasileira da época.

Em 1860, é eleito deputado pelo Ceará, mas não deixa de produzir obras literárias: “Diva” (1864), “Iracema” e “As Minas de Prata” (1865). É festejado como escritor de talento. Em 1868, torna-se ministro da Justiça no gabinete conservador; dois anos depois, desiludido e amargurado, deixa o ministério, voltando à Câmara na oposição ao governo.

Desta data em diante, dá mais ênfase à literatura, publicando inúmeras obras de sucesso: “A Pata da Gazela”, “O Gaúcho” (1870), “O Tronco do Ipê” (1871), “Til”, “Sonhos d’Ouro” (1872), “Guerra dos Mascates” (1873), “O Sertanejo” e “Senhora” (1875). Continua colaborando no jornal O Globo. Em 1877, viaja à Europa para tratamento de saúde; de volta ao Brasil, vem a falecer em dezembro desse ano.

O sucesso e o reconhecimento do público não impediram que recebesse inúmeras críticas e sustentasse longas polêmicas a respeito da linguagem utilizada em suas obras, que continha elementos linguísticos brasileiros.

Em 1870, quando da segunda edição de “Iracema”, refuta no pós-escrito as críticas ao estilo, à linguagem e à concepção do livro, proferidas por Pinheiro Chagas e Antônio Henriques Leal. Dois anos antes, o escritor e crítico português Pinheiro Chagas fizera reparos à linguagem alencariana, ao mesmo tempo que estendia sua censura aos autores brasileiros, os quais apresentariam incorreções no Português referentes ao uso lusitano, bem como tentativas de criar uma língua “brasileira”, no dizer do crítico de além-mar, Pinheiro Chagas (1978):

O defeito que eu vejo em todos os livros brasileiros e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente a falta de correção  na  linguagem portuguesa,  ou Antes,  a  mania  de  tornar  o  brasileiro  uma  língua diferente do velho português por meio de neologismos arrojados  e  injustificáveis  e  de   insubordinações gramaticais. (PINHEIRO CHAGAS apud PIMENTEL PINTO, 1978, p. 73)

Alencar procurou justificar o seu uso recorrendo aos clássicos portugueses ou até mesmo ao Latim, ao mesmo tempo em que reclamava o direito a um estilo brasileiro. Segundo Pimentel Pinto (1978), o escritor faz alusão ao fato de que já existia no Brasil “a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas para a transformação do idioma de Portugal”.

Por ocasião da segunda edição de “Diva”, rebatendo a outras críticas Alencar fez observações sobre as mudanças na língua, que, segundo ele, devia acompanhar a evolução da sociedade:

Não obstante a força incontestável dos velhos hábitos,a língua rompe as cadeias que lhe querem impor, e vai se enriquecendo, já de novas palavras, já de outros modos diversos de locução. (ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1978, P. 75)

Entende Alencar que, sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve; defende o enriquecimento trazido pelas mudanças, bem como um meio-termo entre o radicalismo de inovações injustificáveis e o exagero do conservantismo intransigente.

Em 1873, começa a fase da efervescência crítica. O português José Feliciano de Castilho e Franklin Távora investem contra ele um ano inteiro na revista-panfleto Questões do Dia. Alencar defende-se em uma série de artigos, sob a forma de cartas a Joaquim Serra, reunidos em “O nosso cancioneiro”, de 1874. Em 1875, em O Globo, Joaquim Nabuco anuncia a série de estudos sobre a obra literária de Alencar; era o início da famosa polêmica entre os dois.

As polêmicas sustentadas por Alencar tinham como ponto essencial o uso brasileiro da língua portuguesa, o direito de incorporar em seus escritos certas peculiaridades desse uso, na tentativa de exprimir com mais fidelidade a sensibilidade e o caráter brasileiro; por isso, foi acusado de escrever numa língua incorreta. A seus críticos, responde Alencar:

Censurem, piquem ou calem-se, como lhes aprouver. Não  alcançarão  jamais  que  eu  escreva neste meu Brasil cousa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.(ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1978, p.95.)

Na realidade, a posição de Alencar não era no sentido de estabelecer as bases de uma língua brasileira, mas no da liberdade do artista em matéria linguística: envolvia a liberdade de estilo, como também a reivindicação de uma maior aproximação entre a língua literária e a língua falada. Atribuía ao escritor o papel de intermediário entre o uso popular e o consagrado. Valia-se dos modelos da língua, apoiava-se nos clássicos, na gramática e nos dicionários para legitimar usos pessoais. Destacou-se entre seus contemporâneos, independentemente de suas qualidades de romancista, pela tentativa de romper com os cânones portugueses, procurando valorizar o uso de sua época, exemplificando-o com o seu próprio.

Numa época em que tudo o que soava diferente de Portugal merecia censura, não resta dúvida de que Alencar revelou, em muitos momentos, tendência a uma maior liberdade dos padrões lexicais e gramaticais lusitanos, traduzindo com mais originalidade e espontaneidade expressões brasileiras e refletindo a busca de uma identidade linguística nacional. Seu nacionalismo traduz-se pela exaltação da natureza brasileira, pela valorização dos costumes e tradições locais, pela fidelidade na narração da vida social de sua época, mas sobretudo pelo uso de uma expressão linguística que exprime a identidade cultural de seu país. Nas palavras de Alencar:

O povo  que  chupa  o caju, a  manga,  o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e  o  mesmo  espírito  do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera? (ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1979, p. 94)

 

A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA EM “O TRONCO DO IPÊ”

Há que distinguir a posição teórica de Alencar em face do assunto e a atitude que assumiu nos seus romances. Por isso, é importante examinar o que o escritor fez em matéria de língua em seus escritos. O estudo da linguagem alencariana é decisivo para comprovar suas ideias.

Para tanto, foi escolhido o romance “O Tronco do Ipê”, escrito em 1871, em plena maturidade, num período da vida em que Alencar se encontrava desiludido com a política e no qual se dedicou exclusivamente à literatura. Desse texto foram extraídos alguns exemplos para comprovar o uso brasileiro presente na linguagem do autor.

Nesta obra, o romancista trata de aspectos da vida brasileira durante o Segundo Império; apresenta uma faceta da sociedade rural na década de 1850, quando a economia brasileira ainda se assentava em grande parte na força do braço escravo. Com a crescente urbanização, houve uma afluência para a cidade e o início do abandono de muitas fazendas. Toda a ação do romance se passa na fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, no interior fluminense, às margens do rio Paraíba, tão presente nos romances de Alencar.

Logo às primeiras linhas que abrem a obra em questão, as águas majestosas do Paraíba e o dorso alcantilado da Serra do Mar introduzem o leitor num cenário que lhe é familiar: o da natureza brasileira, exuberante e generosa, em meio à qual vive e trabalha o homem. A fazenda Nossa Senhora do Boqueirão o remete ao ambiente rural, enquanto a casa-grande, as senzalas e a Corte situam-no no tempo: século XIX, antes da abolição da escravatura, no Brasil do Segundo Império.

Algumas páginas adiante, três crianças acompanhadas de duas mucamas e um pajem brincam no jardim e no pomar da fazenda: sobem numa goiabeira, colhem pitangas e araçás, saboreiam jabuticabas, descansam à sombra de um jequitibá. Ao descrever esse cenário, Alencar situa-o num espaço determinado, o da natureza brasileira, por meio das escolhas lexicais realizadas: Paraíba, Serra do Mar, casa-grande, ipê, jequitibá, goiabeira, jabuticabas, entre outras. Ao mesmo tempo, mostra o homem integrado a essa paisagem, dentro do ideal do nacionalismo romântico, que procurava valorizar a natureza nativa e identificá-la ao ser humano.

Enquanto descreve o cenário e exalta as riquezas naturais, Alencar apresenta as pessoas que vivem nesse ambiente, esboçando alguns aspectos da vida da sociedade rural brasileira em meados do século XIX, relacionados por vezes com a vida na Corte. Procura realçar os costumes e tradições do país, no qual os escravos têm um papel importante: além de compor o painel da sociedade brasileira de então, são integrados a ela pelo ambiente doméstico a que estão ligados, sobretudo pelas crianças, com as quais mantêm laços afetivos. Trazem elementos culturais que se vão aos poucos incorporando à vida familiar e social; participam das festas tradicionais e assimilam a religiosidade dessa sociedade rural.

Dentro desse painel, alguns elementos lexicais ajudam a situá-lo no contexto de seu tempo: escravos, casa-grande, senzala, Corte, barão, mucamas, sinhazinha, nhonhô, entre outros. A língua em uso no Brasil, em muitos pontos diferentes dos padrões portugueses, teria forçosamente de expressar a visão de mundo, o modo de ser, a sensibilidade brasileira.

Também o ambiente, em meio à natureza nativa, onde estão as árvores, frutas e plantas da flora nacional, bem como as aves e outros animais da fauna brasileira, é designado sobretudo por vocábulos de origem tupi, por terem sido os indígenas os primeiros habitantes desta terra a nomearem esses elementos, desconhecidos dos europeus. Dentre os tupinismos presentes na obra, podemos destacar os vocábulos referentes à fauna: sabiá, juriti, anu, graúna, urubu, além de sagui e jacaré. Os referentes à flora designam árvores (ipê, jequiá, jequitibá), plantas silvestres (taioba, mandioca, sapé, cipó), frutas (araçá, goiaba, jabuticaba, cambucá, pitanga) e árvores frutíferas (goiabeira, jabuticabeira, cambucazeiro); há ainda nomes de objetos (cuia, arapuca), topônimos (carioca), quitutes (beijus, manuês) e o nome do rio, Paraíba.

O efeito decorrente do emprego do numeroso léxico de origem tupi é a possibilidade de caracterizar a natureza brasileira no que ela possui de mais típico e original e de situar o romance dentro dessa natureza. Curiosamente, os tupinismos empregados em “O Tronco do Ipê” fazem parte do léxico já assimilado popularmente, tendo até mesmo produzido derivados. Prova disso é que o autor não viu necessidade de explicar seu significado em notas de rodapé, o que revela o conhecimento generalizado desses vocábulos.

Pode-se observar também que grande parte do léxico presente na obra é constituído de termos de origem africana, como os que denotam afetividade e familiaridade: sinhá, nhanhã, Iaiá, sinhazinha, nhonhô, nhô, pela intimidade que os escravos gozavam na casa, sobretudo com os filhos de seus senhores. Além disso, os africanismos empregados referem-se sobretudo a funções domésticas (mucamas), qualificadores de pessoas (moleque, calunga), características pessoais (pixaim), objetos (miçangas), estados emocionais, sentimentos (cafifa, candongas, banzar, muxoxo), costumes (samba, jongo, batuque, mandinga), habitação (senzala).

Da mesma forma que os vocábulos de origem tupi, os africanismos são utilizados pelo autor fora do discurso direto, o que comprova já terem sido assimilados pela linguagem comum.

Deve-se destacar ainda o uso de brasileirismos semânticos, palavras com significado diferente de Portugal, como: faceira (elegante, graciosa, vaidosa), já obsoleta no uso lusitano; moço (rapaz, mancebo), em Portugal “criado, empregado; moça (jovem), em Portugal “rapariga”.

Além dos elementos léxicos relacionados, é necessário identificar as escolhas sintáticas realizadas por Alencar que caracterizam, de modo marcante, uma preferência pelo uso brasileiro. Destacam-se aí a colocação pronominal, o emprego do gerúndio em lugar da construção com a preposição a + infinitivo, as formas de tratamento e a troca de concordâncias da 2ª e 3ª pessoas, na linguagem coloquial, a redundância de negativas e outras construções específicas da oralidade brasileira.

É interessante ressaltar a extrema liberdade com que Alencar colocava os pronomes pessoais: ora seguia a norma portuguesa, ora o uso brasileiro, o que lhe valeu inúmeras críticas de seus contemporâneos. O uso brasileiro privilegia a próclise, inclusive no início do período na linguagem coloquial, bem como com o futuro do presente e do pretérito, e em uma locução verbal, com o pronome entre os dois verbos. Assim: Me deixe, Alice! (p.25); …a flor agreste, cheia de seiva, habituada a se embalar… (p.13). Este passeio já está me dando cuidado! (p.50). Você me corta uma folha de taioba? (p.103)

Tem sido considerado característicamente brasileiro o uso do gerúndio nas construções de sentido progressivo, como em: O pajem vinha se requebrando…(p.12). Mário seguiu comandando a fileira…(p.21). Alice subiu correndo os degraus da escada (p.82).

Aparece o emprego do termo coletivo a gente em lugar do nós, como marca da linguagem coloquial. Em geral usado pelos escravos, surge também no diálogo entre D. Alina e o conselheiro Lopes: Em todo caso a gente não se deve descuidar (p.112). Ainda: …quando a gente pensa que esta fazenda do Boqueirão… (p.37).

Registre-se aqui a troca das concordâncias de 2ª e 3ª pessoa – tu e você – já percebida por Alencar e empregada na obra na fala coloquial dos escravos: Olha, calunga, você ainda não viu o presente…(p.25). Reza, reza, nhanhã. Deus lhe há de pagar (p.25). Mas essa troca aparece também no diálogo entre as moças, Alice e Adélia: Queres um manuê? […] Queres vir, Adélia? […] Pois espere passeando no jardim, que eu já volto! (p.86)

A transcrição desse fato era uma temeridade na literatura de sua época. Alencar colocou-se em posição polêmica, mas consciente. Nisso revela um verdadeiro pioneirismo, na desmitificação do dialeto culto da época, controlado pelos puristas. O registro dessa mistura de concordâncias mostra que ela já existia na fala de seu tempo e está presente ainda hoje na linguagem coloquial.

É possível observar o cuidado de Alencar com o diálogo, no sentido de espelhar a língua falada viva e real de seu tempo. Nesse sentido, “O Tronco do Ipê” é muito rico quanto ao aproveitamento de recursos variados e espontâneos da oralidade. Assim, o diálogo alencariano se enriquece de estruturas próprias da linguagem oral e do vocabulário popular. O escritor criou um texto ajustado à realidade linguística e social de seu tempo, por meio das formas coloquiais e das escolhas gramaticais realizadas.

A língua empregada por Alencar na obra estudada revela uma tentativa de traduzir com originalidade e espontaneidade o uso brasileiro da língua portuguesa; reflete a consciência do escritor de seu papel de intermediário entre o uso popular e a língua literária; marca também o reconhecimento da identidade brasileira, com suas peculiaridades e diferenças culturais e linguísticas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 O século XIX, no Brasil, é marcado por dois fatores novos: a Independência política e o Romantismo. A Independência estimulou o ideal romântico do nacionalismo; o orgulho patriótico e o desejo de criar uma literatura nacional, expressa numa língua original e livre das imposições lusitanas, levaram à busca de modelos novos, voltados para os valores brasileiros. Os escritores dessa época intuíram a tarefa de construção cultural nacional, baseada no nacionalismo e na tentativa de buscar uma expressão brasileira autêntica, na afirmação do próprio contra o imposto, no caso, pelo colonizador.

A língua não poderia deixar de refletir essas aspirações. Alguns escritores procuraram fugir à imitação dos clássicos portugueses e exprimir uma realidade mais próxima, por meio de uma expressão que caracterizasse um modo de ser, de sentir, de pensar do brasileiro, diferente dos padrões lusitanos.

Dentre estes, José de Alencar destacou-se não só por suas qualidades de romancista, como por valorizar o uso brasileiro da língua e advogar maior liberdade de expressão linguística. Soube mesclar em seus romances certas peculiaridades do uso brasileiro, incorporando o léxico tupi e o africano, correntes no linguajar do povo, bem como traços da linguagem oral popular em seus diálogos.

Desde os primórdios da colonização, no século XVI, desenvolveu-se no Brasil uma sociedade mista em que conviviam portugueses, índios e negros, em constante interação. Do choque dessas três culturas produziram-se fenômenos de integração cultural e mestiçagem, com reflexos na língua. Sob esse enfoque histórico, examinaram-se algumas especificidades do uso brasileiro, que caracterizam a mudança linguística e o distanciamento do padrão lusitano. Ao refletir sobre o caráter histórico e social da língua, foram destacadas relações desta com o homem e a sociedade, sua importância como elemento unificador e identificador de uma comunidade social e, por conseguinte, essencial no processo de construção da nacionalidade.

O ideal do nacionalismo manifesta-se em José de Alencar na exaltação da natureza brasileira e na identificação e integração do homem a ela, bem como na valorização de nossos costumes e tradições. Este contexto é apresentado principalmente por meio de elementos linguísticos, léxicos e sintáticos, específicos do uso brasileiro.

Por seu talento e coragem, ao assumir a tarefa de refletir em seus escritos aspectos da língua em uso no Brasil em sua época, Alencar participou marcadamente da definição da identidade linguística brasileira e da identificação da brasilidade, representada na obra analisada por elementos linguísticos e culturais, sintetizados na imagem das folhas verdes e das flores amarelas do ipê.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SILVA NETO, Serafim. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Presença, 1976.

 

O CÃO SEM PLUMAS: IMPLÍCITOS CULTURAIS DO PERNAMBUCANO

O CÃO SEM PLUMAS: IMPLÍCITOS CULTURAIS DO PERNAMBUCANO

THE DOG WITHOUT FEATHERS: PERNAMBUCANO’s CULTURAL IMPLICITS

MARIA DE LOURDES GASPAR TAVARES

Doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica. PUC-SP
UNIBR Faculdade de São Vicente-SP
mlgaspartavares@uol.com.br

RESUMO

 Este artigo está situado na área da Análise do Discurso, com vertente crítica sociocognitiva e na linha de pesquisa Variedades do Discurso. Tem por tema os implícitos culturais do pernambucano, examinados em expressões linguísticas da linguagem poética de João Cabral de Melo Neto. Está fundamentado nos pressupostos teóricos da Análise Crítica do Discurso, com vertente sociocognitiva, tendo Teun van Dijk (1992, 1997, 2000) como seu maior representante. Nesse sentido, as noções de cultura e ideologia estão circunscritas nas categorias analíticas Discurso, Sociedade e Cognição, com visão multi e interdisciplinar. Por pressupostos metodológicos, entre outros, tem-se a leitura heurística, a hermenêutica e a de reconstrução histórica, conforme Jauss (1979) e Zilberman (1989), a intertextualidade, segundo Kristeva (1974), a interdiscursividade, Maingueneau (1997), bem como, por critério, o ponto de vista do leitor- pesquisador. A hipótese, que orienta o estudo realizado, considera que a linguagem poética não se reduz a uma função estética. No caso deste Artigo, no discurso literário de João Cabral de Melo Neto, em seu poema O cão sem plumas, as figuras construídas decorrem de uma seletividade lexical, guiada pela cultura do grupo social, no qual se insere o poeta. Logo, toda enunciação é direcionada por intenções e estas estão relacionadas aos marcos de cognição social com suas crenças, de forma a guiar a criação poética por traços culturais. A amostra analisada é composta por textos selecionados da História do Brasil, do discurso da Geografia e do discurso Literário, tematizados no período colonial e na época de construção do poema. O procedimento metodológico adotado é o de percorrer as expressões linguísticas do poema, produzido pelos diferentes discursos indicados, em busca de valores positivos e negativos intra e intergrupais.

PALAVRAS-CHAVE: Implícitos culturais. Intertexualidade. interdiscursividade. 

 

ABSTRACT

This article is situated in Speech Analysis Area, with sociocognitive critical branch and in research line of Speech Varieties. It has as theme Pernambucano’s cultural implicits,  examined in linguistics expressions of João Cabral de Melo Neto poetic language. It is founded in the theoretical suppositions of Speech Critical Analysis, with sociocognitive branch having Teun Van Dijk (1992, 1997, 2000) as its major representative. In this sense, culture and ideology notions are circumscribed in the analytical categories of Speech, Society and Cognition, with multi and interdisciplinary vision. Through methodological suppositions, among others, we have the heuristics reading, the hermeneutics and the historical construction according to Jauss (1979) and Zilberman (1989), the intertextual approach, second Kristeva (1974), the inter-speech, Maingueneau (1997), as well as, by criteria, the reader-researcher point of view. The hypothesis, that guide the taken study, considers that the poetical language does not reduce itself to as aesthetic function. In the case of this article, in the literary speech of João Cabral de Melo Neto, in this poem “the dog without feathers”, these constructed figures are a result of a lexical selection, guided by the social group culture, in which the poet is in. then all enunciation is directed by intentions and these are related to the marks of social cognition with their faiths, in a way to guide the poetical creation by cultural traces the reviewed samples is composed by selected texts of History of Brazil, the one to cover the speech on Geography and the literary speech, focused in colonial period and in the poem construction time. The methodological procedure adopted is the one to cover the linguistics expressions in the poem, produced by different indicated speeches, in search of positive and negative, intra and intergroup values.

KEYWORDS: Cultural implicits. Intertextuality. Interdiscursivity.

 

INTRODUÇÃO

Como se sabe, a atenção dos linguístas, a partir da década de 1960, volta-se para o uso efetivo da língua, e, dessa forma, a unidisciplinaridade cede o lugar à multidisciplinaridade, uma vez que a linguagem humana é caracterizada por diferentes naturezas, tais como a histórica, social, ideológica, cultural, neurológica, fisiológica e a da própria língua.

Assim sendo, os estudos da linguagem procuram centrar-se no texto e no discurso presente no uso efetivo da língua; todavia, há ainda hoje diferentes concepções para os termos texto e discurso. Este Artigo entende o texto como a expressão verbal e discurso como uma prática de interação social, institucionalizada na e pela sociedade, onde tal prática ocorre.

De acordo com os fundamentos de van Dijk (1992), a Análise Crítica do Discurso, ACD, está relacionada à Escola de Frankfurt e, de forma geral, tem por objetivo analisar o discurso com uma visão crítica, de forma a denunciar o domínio das mentes das pessoas pelo discurso. Este trabalho, embora fundamentado na ACD, com vertente sociocognitiva, tem por objetivo encontrar traços da cultura nordestina do pernambucano, memorizados socialmente, com base nas expressões linguísticas, efetivamente em uso na linguagem poética. A noção de cultura, a partir da multidisciplinaridade, torna-se complexa, podendo conter significados relativos a valores sociais ideológicos, normas de condutas sociais, tradições, rituais, folclore, entre outros. Este Artigo situa o termo cultura, circunscrito na inter-relação das categorias analíticas Sociedade, Discurso e Cognição, embasado nos pressupostos de van Dijk (1992).

Entende-se que a sociedade pode ser definida por uma estrutura de papéis sociais, e, embora a sociedade seja o funcionamento destes papéis sociais, propicia, dessa forma, a relação entre as pessoas. O discurso é uma prática sociointeracional, pela qual se constrói socialmente as formas de se representar o mundo em língua. Todas as formas de representação do mundo são entendidas como formas de conhecimentos avaliativas, ou crenças, que decorrem da projeção de um ponto de vista para se focalizar o social.

Cada ponto de vista é orientado por objetivos, interesses e propósitos comuns, os quais levam as pessoas a se reunirem em grupos sociocognitivos diferentes, pois cada grupo tem seu próprio ponto de vista. Este cria um determinado estado de coisas para o que ocorre no mundo. Dessa forma, como cada grupo social constrói o seu próprio ponto de vista, há constantes conflitos. O ponto de vista social dá origem, ao ser projetado, às coisas e aos seres do mundo, formas específicas de conhecimentos.

Para van Dijk (2000), a Cognição é social e define-se pelas formas de conhecimentos avaliativas, ou seja, marcos de cognição social. Segundo a vertente sociocognitva da ACD, Sociedade, Discurso e Cognição são categorias inter-relacionadas de maneira que uma se define pela outra. Assim sendo, verifica-se que as formas de conhecimentos avaliativas são construídas no e pelo grupo social por meio do discurso.

Ainda segundo a ACD (van Dijk 2000), a Análise do Discurso tem seu ponto de partida na fala para o discurso. Nesse sentido, há uma dialética entre o individual e o social, pois ao mesmo tempo em que o social guia os conhecimentos individuais, os individuais modificam o social, em uma interação constante. Em outros termos, os discursos públicos constroem formas de conhecimentos sociais para as pessoas, todavia, estas mesmas pessoas modificam os conhecimentos sociais.

Nessa perspectiva, selecionou-se o poema O cão sem plumas de João Cabral de Melo Neto, que é um evento discursivo particular. Esse interage com as cognições sociais, tendo em vista o diálogo cultural do poeta com a sociedade brasileira, em relação ao grupo de pernambucanos que integra a região nordeste do Brasil.

O poema selecionado faz parte de uma trilogia, complementada pelos poemas O Rio e Morte Vida Severina. Justifica-se a seleção do poema O cão sem plumas por se tratar do rio Capibaribe, que é pernambucano. O Capibaribe banha a faixa norte e leste do Estado de Pernambuco; nasce na serra de Pesqueira, no lago do Angu, e tem um curso de cerca de 290 km até chegar à cidade de Recife.

O poema O cão sem plumas é composto por 4 (quatro) partes e 419 versos. A primeira parte, denominada “Paisagem do Capibaribe I”, possui 104 versos; a segunda, “Paisagem do Capibaribe” II, 121 versos; a terceira, “Fábula do Capibaribe”, 101 versos e a quarta, “Discurso do Capibaribe”, 90 versos.

Por meio da segmentação do poema é possível reconstruir a História do Brasil: desde o Tratado de Tordesilhas, do período colonial, das invasões em pernambuco, dos holandeses, da Companhia das Índias Ocidentais, da importância de Maurício de Nassau para a região,  da época de luxo e riqueza, da economia da cana-de-açúcar e algodoeira, do declíneo, até o Governo do Presidente Gaspar Dutra.

A reconstrução Geográfica retrata o percurso do Capibaribe no passado até 1950. A degradação de sua paisagem, dos homens que povoam as margens do rio, cujos corpos acabam decompostos e misturados à lama capibarenha; do abandono, da poluição, da morte das águas antes límpidas e férteis.

Em seu poema O Cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto denuncia a decadência do Capibaribe e o tratamento dado aos habitantes miseráveis de suas margens:

(…)O homem, porque vive/ choca com o que vive/ Viver é ir entre o que vive/ O que vive/ incomoda de vida/ O que vive/ choca/ tem dentes, arestas/ é espesso/…porque é mais espessa/ a vida que se luta/cada dia/o dia que se adquire/cada dia/como uma ave/que vai/ cada segundo/conquistando seu voo/ (NETO, J.C.B.M.,1999, págs.115-116)

Em virtude da extensão do poema, citada anteriormente, não é possível inseri-lo neste Artigo; todavia, fica a referência bibliográfica ao final do presente texto.

No poema analisado, para João Cabral de Melo Neto, o rio Capibaribe é representado por uma narrativa, cujo enunciado textual apresenta:

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Tal enunciado é relativo a contemporaneidades diferentes, cuja Situação Final está focalizada no poema selecionado como texto-base, para a leitura da linguagem poética e sua expressão cultural.

Nesse sentido, tem-se por ponto de partida a visão de Silveira (2000), a qual define cultura como um conjunto de crenças relativas ao vivido e ao experienciado socialmente, de forma a construir valores que têm raízes históricas e são modificados em cada contemporaneidade devido ao aparecimento de novas dificuldades. Por esta razão, as crenças sociais são valores que traçam normas de condutas, as quais guiam as atitudes das pessoas para a resolução de novos problemas; dessa forma, é necessário que se articule o imaginário com a memória social, na qual está armazenada a cultura do grupo social, a fim de se projetar o futuro, resolvendo os conflitos atuais.

Nesse contexto, em O cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto representa, com valor negativo, o estado de vida do pernambucano, ou seja, no momento de produção do poema (1950), de forma a tematizar a estagnação, a pobreza, a fome e a podridão. Como se disse, o poeta faz uma denúncia do estado de abandono no qual se encontrava o povo pernambucano, expresso, metonimicamente, pelo rio Capibaribe e com especificidade, em sua foz, na cidade do Recife.

Neste Artigo, defende-se que a linguagem poética não se reduz a uma função estética, no e pelo discurso literário de João Cabral de Melo Neto; os versos construídos decorrem de uma seletividade lexical guiada pela cultura do grupo social, no qual se insere o poeta. Logo, toda enunciação é direcionada por intenções e estas estão relacionadas aos marcos de cognição social com suas crenças, de forma a guiar a criação poética, por traços culturais.

Os estudos acerca da identidade têm suscitado discussões nos mais diferentes campos das Ciências Humanas e Sociais. Segundo Sellan (2001, p. 6), “ a busca do que somos e de nossa representividade na vida social tem sido uma constante nesse momento de transição por que passam as sociedades contemporâneas.”

Justifica-se a seleção do texto-base O cão sem plumas, por ser relativo ao rio Capibaribe, tipicamente pernambucano.

Os intertextos e interdiscursos da História, da Geografia, da Enciclopédia e da Documentação, têm, por critério, partir a linearidade do texto enunciado. A seleção do discurso da História, por sua institucionalização pelo Poder público o qual controla a imposição de conhecimentos, por meio da Escola, busca construir formas avaliativas do que aconteceu no Brasil, desde suas raízes históricas. Assim sendo, pelo discurso institucionalizado, constroem-se crenças genéricas as quais participam das cognições sociais dos brasileiros. Foram selecionados também textos do discurso da Enciclopédia, a fim de complementar a amostra anterior. Ilustra-se também com o discurso enciclopédico, uma vez que faz parte das Ciências Sociais; no entanto, embora tenha como ponto de partida o discurso da História, procura complementá-lo com as demais Ciências Sociais, para apresentá-lo como um discurso público e institucionalizado, direcionado a iniciantes no “saber”.

A pesquisa acerca dos fatos históricos correspondentes ao Tratado de Tordesilhas até o Governo Gaspar Dutra foi realizada em Enciclopédias, no caso, Enciclopédia Delta Universal (1987), Larousse Cultural (1998), bem como na obra de Cotrim ( 2000), Haldelmann(1978) e Prado Júnior (1998).

As leituras realizadas da linguagem poética de João Cabral de Melo Neto do texto-base propiciaram, pela atribuição de valores positivos e negativos, um levantamento de crenças presentes no marco de cognição social do pernambucano, enquanto grupo sociocognitivo do nordeste brasileiro, confrontadas com crenças de outros grupos sociais brasileiros, de maneira conflitante.

  

A QUESTÃO DA IDENTIDADE SOCIAL

Em princípio, a vertente sociocognitiva da ACD considera a noção de identidade como relativa ao constructo social-pessoal, ou seja, uma representação mental elaborada de forma a responder com o que uma pessoa se identifica socialmente.

As perguntas que o estudioso deve-se fazer são: o que é, exatamente, uma identidade cultural e o processo de identificação? O que implica, exatamente, a construção dessa representação mental? Como se dá tal construção? Os membros de um grupo podem ser considerados como tal, somente por participar da ideologia do grupo? Quando eles identificam a si próprios como membros do grupo?

Segundo Van Dijk (1997 b), as respostas a serem dadas a essas questões situam-se nos limites de uma teoria da Identidade Social, da Cognição Social e da Sociologia.

Para o autor, a autorrepresentação que as pessoas fazem de si mesmas, ao se constituírem como membros de várias categorias de grupos – mulheres, homens, pernambucanos, vicentinos, jornalistas, professores, entre outros – está situada na memória episódica, ou individual, e compreende uma construção gradual a qual decorre de experiências pessoais, modelos, dos acontecimentos. Tais representações, por serem construídas em sociedade, são guiadas por conhecimentos sociais e, desse modo, a autorrepresentação procede dos modos pelos quais outros membros do grupo, ou membros de outros grupos veem, definem e tratam os indivíduos como pessoas. Em outras palavras, as identidades de grupo podem ser mais ou menos abstratas e desligadas do contexto, do mesmo modo que o são as representações sociais. Os vicentinos, por exemplo, constroem sua identidade, enquanto membros de um grupo regional, tendo como ponto de partida os demais grupos, como os viram ou como os identificaram ao interagir com eles.

Os membros de grupos sociais, nesse sentido, partilham várias identidades, mais ou menos estáveis, por meio dos contextos pessoais, pois estão dinamicamente mudando de papéis sociais. Assim, em situações concretas, algumas destas identidades podem ser mais proeminentes que outras, de tal modo que, em cada situação, a proeminência, a hierarquia ou a pertinência da identificação com o grupo monitorarão as práticas sociais reais. Os membros de classes diferentes, por exemplo, atuam com papéis sociais diferentes, no mesmo grupo regional.

 Relacionar o dado e o novo, segundo Palma (1998), na leitura do poético, requer uma visão multidisciplinar, como processo socio / histórico / cognitivo / psíquico / ideológico / interacional. Para tanto, não basta apenas considerar, esteticamente, a magia do poético. É preciso ir mais além: fazer do mundo da leitura a leitura de mundos.

Para Zilberman (1989), a leitura de reconstrução histórica é uma etapa do processo hermenêutico: leitura compreensiva, retrospectiva e de reconstrução histórica. Por meio dela, o texto que estava mudo passa a ter voz, uma vez que resgata o seu diálogo original.

Este Artigo aborda a leitura de reconstrução histórica, a qual recupera a relação que a obra tem com o tempo. Nesse sentido, para Zilberman (1989), a leitura histórica, hermeneuticamente, corresponde à etapa da aplicação de Jauss (1979) o qual explica a importância de uma obra, na história. Dessa forma, a compreensão e a interpretação estética necessitam da leitura de reconstrução histórica, a qual se revela como parte do processo dialógico, próprio da hermenêutica literária, desde que se considere o texto literário uma resposta a uma pergunta construída pelo poeta, na época de produção do seu poema.

A hermenêutica literária, de modo geral, admite hoje que nenhuma leitura é inocente ou feita sem pressupostos. Assim sendo, a reconstrução histórica implica que o intérprete conheça intertextos e interdiscursos, os quais intervenham na localização do texto na época de sua produção, as mudanças pelas quais passou, provocou e o modo como foi assimilado, na linha do tempo.

Atualmente, o processo hermenêutico tem sido tratado como uma forma de introduzir o leitor da linguagem poética em uma simbolização do mundo, a fim de considerar o texto poético como uma prática específica discursiva social e histórica, manifestada pela fala. Além disso, é preciso avaliar outros fatores presentes nas atividades de leitura, como a “noção de sujeito, a natureza dos protagonistas do discurso, a situação deles no tempo e no espaço, o propósito da interação comunicativa.” (SILVEIRA, 1998, p.141).

No caso da poesia, “as leituras devem sempre centrar-se no significado mais amplo do texto, significado que não se confunde com o que o texto diz, mas reside no modo como o texto diz.” (LAJOLO, 1997, p. 50)

Segundo Ortony (1993), dois pontos são considerados, na leitura do texto poético:

1º. o emissor, ao utilizar a linguagem, diz uma coisa pensando em outra; e

2º. a discrepância entre o dito e o pensado.

No que se refere à primeira, verifica-se, entretanto, que não é uma prerrogativa exclusiva da linguagem poética; logo, não é um dado suficiente para caracterizar o texto poético. A segunda característica destaca a discrepância entre o dito e o pensado, pelo ‘fingir’ figurativo, forma indireta de expressão, gerando anomalias, em termos de co-texto e contexto. A inter-relação entre co-texto e contexto decorre da reconstrução histórica.

A partir das saliências deixadas pelo poeta em O cão sem plumas, levantou-se um corpus de intertextos relativos aos interdiscursos da História.

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Para Sánches (1992) o discurso da História apresenta-se como uma prática sociointeracional específica, que se define pelo registro de um material real, porém representado por um determinado ponto de vista, relativo aos participantes do Poder.

Goldman (1989), ao tratar do discurso da História, define-o a partir do fazer do historiador, ou seja, como o historiador constrói seus textos, a partir do exame de documentos existentes. A História não trabalha com a reconstrução do fato ocorrido, e sim com as versões textuais desse fato, já registradas em documentos, consideradas oficiais. É, a partir dessas versões, que o historiador reconstrói o ocorrido no passado, tornando-o um fato histórico.

A História é construída pelo Poder. Os discursos institucionalizados e públicos têm seus contextos globais organizados por três categorias: Poder, Controle e Acesso. O Poder controla o que tem acesso ao público, para dominar as mentes das pessoas; cancela, dependendo de seus interesses, os valores sociais que presume negativos para si e maximiza outros valores que lhe são favoráveis, contruindo, com isso, uma nova escala de valores, projetada nas cognições sociais. Logo, o discurso da História, como um discurso público institucionalizado, produz e reproduz ideologia.

Em se tratando da teoria da história, o termo História refere-se quase sempre ao suceder temporal, do tipo narrativo, independentemente da forma como este suceder chega ao nosso conhecimento.

No que se refere ao período Colonial, o discurso da História, consequentemente, tem um papel fundamental para a construção das cognições sociais, enquanto crenças genéricas e crenças específicas. Esse discurso constrói para seu público as representações mentais avaliativas a respeito de um fato sucedido no passado, que não foi presenciado nem vivido pelos grupos sociais contemporâneos, mas que lhes é relatado. Logo, analisar, com visão crítica, o discurso da História do Brasil, relativo a Pernambuco, ao Recife e ao rio Capibaribe abre perspectivas para a compreensão dos marcos de cognição social, das crenças específicas, da memória social do brasileiro e das crenças genéricas.

Examina-se a construção da identidade ideológico-cultural do pernambucano, a partir do tema: rio Capibaribe: com plumas e sem plumas, representado, ideologicamente, pelo Poder econômico e político, nas seguintes dimensões:

– dimensão identidade e status– que identifica os pernambucanos por um status adquirido, ou seja, a doação de terras pelo rei de Portugal num sistema de capitanias brasileiras; depois, um status conquistado, pois, graças à região geográfica, a prosperidade de Pernambuco teve início com o cultivo da cana-de-açúcar e do algodão, que atraiu grande número de europeus para a região.

– dimensão identidade e valor, pois os pernambucanos, ao deixarem de representar o papel do grupo sociorregional mais importante no Brasil, perdem o status adquirido e conquistado e entram em fase de estagnação socioeconômica, com o ciclo do café, em São Paulo, que muda para o sudeste o polo econômico, artístico e político do Brasil.

Segundo Kristeva (1974), um texto é sempre um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica, neste sentido, fundamentando-se nos estudos de Bakhtin, quase desconhecidos no ocidente até o final da década de 1960 do século XX, Julia Kristeva designou o fenômeno do dialogismo intertextual como intertextualidade.

Para Tavares (1999) o que caracteriza a intertextualidade é introduzir um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto. Assim sendo, cada referência intertextual é o lugar de uma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática do texto, ou então voltar ao texto-origem, precedendo a uma espécie de anamnese intelectual, em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático deslocado e originário de uma sintagmática esquecida. Na realidade, a alternativa apenas se apresenta aos olhos do analista. Estes dois processos operam na leitura e na palavra intertextual, semeando o texto de bifurcações que lhe abrem, aos poucos, o espaço semântico.

Em se tratando dos textos assimilados, o estatuto do discurso intertextual é assim comparável ao de uma super-palavra, uma vez que os constituintes deste discurso já não são palavras, e, sim, fragmentos textuais.

O vocabulário utilizado pela intertextualidade é a soma dos textos existentes. Opera-se, portanto, uma espécie de separação no nível da palavra, uma promoção do discurso com um poder infinitamente superior ao do discurso monológico corrente. Basta uma alusão para introduzir no texto centralizador, um sentido, uma representação, uma história ou um conjunto ideológico.

O texto de origem lá está, virtualmente presente, portador de todo o seu sentido, sem que seja necessário enunciá-lo. Isso confere à intertextualidade uma riqueza e uma densidade excepcionais. Em contrapartida, é preciso que o texto citado admita a renúncia à sua transitividade: ele já não fala, é falado. Deixar de denotar, para conotar. Já não significa por conta própria, passa ao estatuto de material, como reconstrução mítica, em que colecionam mensagens pré-transmitidas para reagrupá-las em novos conjuntos, numa incessante reconstrução a partir dos mesmos materiais; são sempre os mesmos fins chamados a desempenhar o papel de meios: os significados transformam-se em significantes e vice-versa. Toda palavra e toda leitura intertextual cabem neste movimento.

A colonização inicial de Pernambuco seguiu o sistema de capitanias hereditárias, instaurado pelo rei de Portugal, no Brasil. Por meio das expressões grandes famílias espirituais da cidade, o intertexto da História é retomado, verificando-se que o sistema de capitania foi composto por principados feudais.

Para a Coroa, a posse da Capital é representada com valor positivo. Por essa razão, o regime de capitanias é estabelecido segundo dois critérios:

– o donatário ser pessoa de confiança da corte portuguesa;

– ter dinheiro para poder explorar por si só e enviar a Portugal o capital ambicionado.

O extracionismo do pau-brasil, para Portugal, é representado com valor positivo. Por essa razão, a capitania de S. Vicente aufere 100 léguas da Costa, em relação à Capitania da Nova Luzitânia, que apenas recebe 50 léguas. Nesse sentido, entende-se que, para a Corte portuguesa, Martim Afonso de Souza atenderia melhor à ambição portuguesa de lucro e de posse de capital.

No que se refere ao vivido pelos pernambucanos, durante o regime de capitanias, o grupo social é organizado por uma estrutura de papéis que se define por doador/ donatário.

Os versos trazem as expressões lama, mangue, foz de muitos rios, verifica-se no intertexto da História que Duarte Coelho, o qual servira com destaque durante anos no Oriente, recebeu a capitania, denominada Pernambuco, a feitoria fortificada, com uma extensão de 60 léguas, desde o rio São Francisco até o Igaraçu, ao longo das costas das atuais províncias de Alagoas e Pernambuco (título de 21 de janeiro de 1535).

O status conquistado pelos pernambucanos resulta do empenho, da luta, da vontade e do sucesso, bem como resume a narrativa histórica desse grupo social, que pode ser apresentado em três grandes fases: portugueses, holandeses e, novamente, portugueses.

O ciclo do açúcar em Pernambuco dá aos pernambucanos status conquistados, pois com a produtividade e exportação de açúcar para a Europa, os nobres portugueses, que receberam terra na região, passam a atender tanto aos interesses de Portugal quanto aos seus próprios interesses.

No poema, tem-se cão sem (com) plumas, árvores pingando os mil açúcares, das salas de jantar pernambucanas, as grandes famílias espirituais da cidade, chocam ovos gordos de sua prosa, na paz redonda das cozinhas, ei-las a revolver viciosamente seus caldeirões, de preguiça viscosa, se a moenda lhe mastiga o braço, vida mastigada, palácios.

Segundo Gilberto Freire (2002), só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo trabalho escravo.

A quantidade de açúcar e o alto preço do produto proporcionaram no século XVI e no século XVII não só o luxo como, sobretudo, a luxúria, entre os senhores de engenho do Brasil; tudo concorrendo para o maior ócio dos senhores.

Dessa forma, o intertexto traz representado em língua os seguintes valores:

– o enriquecimento, decorrente da produtividade, propiciou o luxo, o conforto, as construções nobres de Portugal, ou seja, palácios. As margens e a foz do Capibaribe foram transformadas em ruas, praças, cais, pontes etc, como cópia da riqueza europeia. Nesse contexto, tanto o negro como o preto passam a ser representados como marginais na sociedade e sem alma. Estes podiam ser chicoteados, torturados e mortos, pois não eram considerados seres humanos.

No texto-base, lama preta e a cor preta mantêm essa representação de sujeira, mal cheiro, estagnação.

Os holandeses, em busca do Poder econômico, se interessam por Pernambuco. Além disso, a semelhança com a Holanda propicia a invasão, pelo príncipe Maurício de Nassau e seus colaboradores.

Maurício de Nassau tem conhecimento e experiência suficientes para fazer a drenagem das águas lamacentas do rio Capibaribe e edificar uma cidade com perspectivas de se tornar grandiosa; como nos versos do poema em estudo, é nelas, mas de costas para o rio, no extremo do rio, o mar se estendia.

Maurício de Nassau também inicia a plantação de cravo, canela, noz-moscada, gengibre, arroz e caju.

Tais intertextos são representados com valor positivo aos holandeses, os quais trouxeram o desenvolvimento, a drenagem geográfica e a fortificação da região de Pernambuco. Essas atitudes tornaram Recife uma capital federal, diferenciando-a das demais cidades brasileiras, pois os holandeses privilegiavam o setor urbano para exportação do açúcar e algodão; drenagem e povoação do Capibaribe, com especial preservação dos arrecifes, os quais impediam a invasão da água do mar, tal qual, na Holanda.

O status adquirido (donatário e sesmeiros) passa a status conquistado, inicialmente pelos portugueses, com o açúcar e o algodão; depois, com a Companhia das Índias Ocidentais, os proprietários das terras, próprias para o —-cultivo da cana de açúcar, com o objetivo de conquistar a riqueza, por meio da cultura açucareira na região.

Durante a presença holandesa, tanto na dimensão identidade e status, quanto na dimensão identidade e valor, a Companhia das Índias Ocidentais representa o Poder; já, na dimensão envolvimento, os proprietários de engenhos, produtores do açúcar, representam o Poder.

Assim, o Poder é exercido pela Holanda. Esse poder tem por Controle Maurício de Nassau e o Acesso, os senhores de engenho os quais continuam a produção açucareira.

Para os historiadores e enciclopedistas brasileiros, o domínio da Coroa portuguesa é representado de forma negativa, pela política expansionista, pois Portugal tem por interesse e objeto adquirir capital. Por essa razão, em princípio, os pernambucanos são representados em seu status adquirido como uma luta de portugueses que se querem brasileiros, ou seja, sobreviver criativamente às adversidades impostas de fora para dentro.

 Maingueneau (1997) conceitua o discurso como o ponto de intersecção de outros discursos, pois contém uma série de categorias comuns a esses, tais como: a polifonia, a intertextualidade, o conteúdo implícito e o caráter pragmático.  Nesse sentido, discurso é o espaço da linguagem em funcionamento e a sua articulação com o contexto social; por isso, o discurso é a linguagem em ação, o lugar em que se produz o uso do sistema da língua, ou seja, língua em contexto, língua não coisificada, mas língua em pleno funcionamento.

Para Maingueneau (1997), no âmbito dos sentidos, o discurso se produz como manifestação resultante da inserção do ato de comunicação no universo do pensamento que o engloba e o transporta para um sistema de relações com outras manifestações do mesmo universo. Essas outras manifestações do universo do pensamento, outros discursos, outras frases, o contexto discursivo, etnológico e ideológico operam na codificação das mensagens como geradores de sentido, por eles mesmos, e servem na compreensão do seu interpretador para a identificação de significados e sentidos, sejam eles subjacentes, implícitos, simbólicos ou míticos.

Ao tratar da Análise do Discurso, com uma visão pragmática, Maingueneau (1997), propõe resgatar a cultura e o meio, em cujo interior um documento nasceu, assim como compreender as condições que permitiram sua existência. Por essa razão, embora este Artigo esteja fundamentado na ACD, faz uma revisão de Maingueneau.

Para o autor, analisar o discurso apenas com uma visão linguística não é satisfatório; por isso, defende que é necessário considerar a dualidade radical da linguagem, ao mesmo tempo integralmente formal e integralmente atravessada pelos embates subjetivos e sociais. Esses conflitos delimitam um espaço próprio no exterior de um interdiscurso limitado. Assim, uma Análise do Discurso precisa considerar as condições históricas de produção, segundo as quais o que se disse e o como se disse estão intertextualizados a fim de se analisar a interdiscursividade do discurso do Eu com o do Outro, a alteridade, considerando-se, pela dialogia discursiva dos espaços discursivos, o conflito ideológico.

 Em 1950, presidia o Brasil Eurico Gaspar Dutra. A política de Dutra é bastante criticada: por um lado, conseguiu equilibrar o orçamento da nação e estabilizar a cotação do cruzeiro no mercado monetário internacional, por outro, a má utilização das divisas acumuladas no decorrer da Guerra, a importação sem critérios e desenfreada de produtos estrangeiros e a dissolução do Departamento Nacional do Café, com a consequente liquidação dos seus estoques, foram alvo de severos ataques por parte dos oposicionistas.

A atividade pastoril, sobretudo, ainda é exercida; a bovina e a caprina, todavia, foram signitivamente restringidas devido à estiagem, ao adensamento da povoação, à divisão de terras e às pequenas lavouras de algodão.

Os interdiscursos da história propiciam a reconstrução histórica do referente rio Capibaribe, seu curso, suas margens, os ribeirinhos e a cidade do Recife, em sua foz. Por se tratar de um eixo narrativo, têm-se a designação cão, por ser um animal doméstico, fiel, submisso e dócil, responsável por guardar e defender seu dono; é selecionado, portanto, para a construção metafórica do rio Capibaribe. Por sua vez, o rio Capibaribe é selecionado para a construção metafórica de Pernambuco, devido a seu curso e a sua foz, que representa para o pernambucano a vontade de vida devido às suas águas, o que torna suas margens locais de concentração populacional.

Na época da produção do poema, o rio Capibaribe e suas margens passam à estagnação que causa a pobreza, o desemprego e a fome.

Com o governo de Dutra, não só ocorre a manutenção da perda de poder dos senhores de engenho, como ocorre o início da perda de poder das oligarquias paulistas, devido ao imperialismo norte-americano sobre o Brasil. Em Pernambuco, essa política amplia a situação desastrosa, iniciada com a saída dos holandeses e o término do ciclo do açúcar.

A estagnação, a lama, a desumanização do pernambucano decorre da passividade destes para se restaurarem como cão com plumas.

O mesmo não ocorre em São Paulo, pois a introdução do capital estrangeiro, o leva a seu desenvolvimento, embora ao término das oligarquias paulistas.

Em síntese, o que se pode verificar pelo discurso da História:

– as representações são sempre positivas em relação ao passado, relativo aos holandeses, à cana de açúcar e ao algodão;

  • valores negativos, atribuídos ao término do ciclo do açúcar, devido à incompetência dos senhores de engenho, que não se modernizaram tecnicamente nem souberam competir com o mercado estrangeiro;
  • valor negativo, atribuído, também, à mudança do eixo econômico do Nordeste para São Paulo;

No que se refere ao texto-base, João Cabral de Melo Neto representa a vida em Pernambuco, pela estagnação, poluição e decadência.

O autor, no seu discurso dialógico, progride deserto para estagnação e passividade, nas quais o homem se desumaniza em rio e o rio se humaniza na desumanização.  Os resultados obtidos indicam que, segundo o discurso da História, as metáforas focalizam:

Cão com plumas: Apogeu, progresso;

Cão sem plumas: Decadência, Estagnação

O conjunto de intertextos propicia responder que:

– Pernambuco nunca foi privilegiado pela política econômica da Colônia, do Império e da República;

– O povo pernambucano sofre uma imposição de fora para dentro pelos regimes políticos:

  • a)durante a colonização, o donatário não possuía condições econômicas para atender às exigências econômicas de Portugal, embora fosse amigo da Corte portuguesa;
  • b)Pernambuco tem status conquistado pela produção do açúcar e do algodão que leva essa região a ser objeto de interesse dos holandeses.

Estes propiciam o desenvolvimento econômico, social, artístico e adaptação geográfica de alto nível. Com a expulsão dos holandeses ocorre uma ruptura que veio de fora para dentro pela retomada regional da Coroa Portuguesa.

  • c) O status adquirido por Pernambuco, na produção do açúcar e do algodão, é retirado de fora para dentro com a mudança do eixo econômico para o Sudeste.

Os pernambucanos não atribuem valor negativo ao seu conservadorismo, o que os leva a manter uma agronomia antiquada e sem competitividade; todavia atribuem valor negativo à mudança imposta pelo Império para o eixo econômico do Sudeste, ou seja, a economia monocultoral cafeicultora.

Esses valores constroem o discurso fundador de João Cabral de Melo Neto, o qual, dialogicamente, denuncia a estagnação dos pernambucanos, presente no preconceito atual existente para o eixo Sul/Sudeste, em relação a eles, representando-os como preguiçosos, incapazes e estagnados.

Logo, os resultados obtidos indicam que a linguagem poética, embora se diferenciando da linguagem da prosa e do cotidiano, é guiada por crenças específicas e genéricas de forma a serem estas a unidade imaginária cultural do poético.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este Artigo, ao centrar seu ponto de partida no discurso, concebendo-o como interação cognitivo-social, postula ser necessário examinar o que é ensinado e repetido em Sociedade, em interações simbólicas que, nesse caso, compreendem o verbal escrito e outras atividades de grupo, por exemplo, autores que representem a sua terra em linguagem poética.

Defender a existência de uma identidade, sob a forma de um constructo pessoal e social, é afirmar que esta identidade tanto garante a identificação da pessoa quanto dos grupos aos quais ela se integra, com os quais ela interage.

Frente ao fato, a memória de longo prazo é o lugar de armazenagem de conhecimentos sociais e individuais. Dessa forma, os conhecimentos sociais são construídos no e pelo discurso em interação, inerentes às práticas sociais discursivas que guiam os atores na representação de seus papéis. Os conhecimentos individuais são construídos pela relação entre o indivíduo e o mundo, com base nas suas experiências pessoais; todavia, é necessário considerar que os conhecimentos pessoais são guiados pelos sociais, em uma constante interação do Eu com o Outro, de forma que o Outro se torne o Eu social do individual.

Em síntese, a noção de identidade cultural é tão difusa quanto a de identidade social, uma vez que pode abarcar desde dimensões muito amplas até muito restritas; nesse sentido, portanto, abarca desde a nação brasileira até grupos regionais e sociais muito restritos.

Segundo van Dijk (1997 b), do ponto de vista sociocognitivo, a ideologia é uma noção, pois o que existe são várias ideológicas sociais, pois há uma multiplicidade de marcos cognições sociais e de papéis sociais.

Para o autor, tratar a questão da ideologia, como um componente cognitivo-social, implica considerar:

  • as ideologias são sistemas de crenças e, por essa razão, precisam ser estudadas em um marco de cognições sociais, a fim de se verificar as suas relações com os objetos mentais e os processos que os constroem;
  • ignorar as dimensões cognitivas das ideologias e analisá-las somente em termos de práticas, formações e de estruturas sociais, propicia uma redução imprópria dos fenômenos sociais e uma visão incompleta das ideologias;
  • as ideologias são adquiridas, partilhadas, utilizadas e modificadas socialmente por membros de grupo e, por isso, são um tipo especial de representações mentais partilhadas;
  • as ideologias são reproduzidas por meio de seu uso cotidiano, pelos membros sociais no cumprimento de práticas sociais discursivas institucionais além de eventos discursivos particulares;
  • as ideologias têm fundamentos sociais e cognitivos que abarcam o conhecimento e as opiniões dos membros sociais. Por isso, a dimensão social das ideologias está em uma dialética com os seus usos pessoais por parte dos membros de um grupo social.

Nas palavras de van Dijk (1997 b) ,as ideologias formam a base axiomática das representações sociais partilhadas por um grupo e por seus membros, constituindo fenômenos mentais e sociais. O estudo das ideologias está situado na área de estudos socio-históricos a respeito das ideias de grupos sociais e de períodos históricos específicos, pertinentes à construção destas ideias. Tais grupos formam outras ideologias, com base na imposição da ideologia do Poder da época. Essas ideologias mantêm-se nas raízes históricas das ideias da Nação brasileira, pelos discursos institucionalizados.

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ASPECTOS LINGUÍSTICOS, DISCURSIVOS E INTERTEXTUAIS NA LEGIBILIDADE DO TEXTO PUBLICITÁRIO

ASPECTOS LINGUÍSTICOS, DISCURSIVOS E INTERTEXTUAIS NA LEGIBILIDADE DO TEXTO PUBLICITÁRIO “LINHA ATEGO MERCEDES-BENZ”

ASPECTS OF LANGUAGES, DISCURSIVE AND INTERTEXTUAL OF LEGIBILITY IN THE ADVERTISING TEXT ” LINE MERCEDES-BENZ ATEGO”

MILTON CARVALHO LOPEZ

MBA em Operações Logísticas-UNIMES
UNIBR – Faculdade de São Vicente-SP
milton.lopez@unibr.edu.br

GRETCHEN STIPP

Graduação em Pedagogia
Especialista em Docência de Ensino Superior pela
UNIBR- Faculdade de São Vicente-SP
gretchenstipp@hotmail.com

RESUMO

Este trabalho está situado na área de Leitura e Produção Textual. Tem por tema o levantamento de aspectos linguísticos, discursivos e intertextuais na legibilidade do texto publicitário. Tem-se por pressupostos teóricos a perspectiva de Kristeva (1974), Koch (1991) e Maingueneau (1997); os estudos de Fiorin (1989) sobre os preceitos de Saussure e Jakobson; Barros sobre a Semiótica (1980) e por critério, o ponto de vista do aluno-pesquisador. A amostra analisada é composta do texto publicitário “Linha Atego Mercedes Benz” de 2013. Os resultados obtidos indicam que, a partir do levantamento linguístico, discursivo e intertextual, é possível a legibilidade do texto publicitário. Como novas perspectivas, propõem-se a necessidade de se aprofundar os estudos nesta área, a fim de que se possa verificar a importância da retórica, no texto persuasivo.

PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade. Interdiscursividade. Mercedes-Benz.

ABSTRACT

This work is situated in the area of Reading and Textual Production. Its theme raising linguistic aspects, discursive and intertextual readability of text advertising . It has a theoretical assumptions perspective Kristeva (1974), Koch (1991) and Maingueneau (1997); studies of Fiorin (1989) on the precepts of Saussure and Jakobson; Barros on Semiotics (1980) and the criterion, the point of view of the student – researcher. The sample consists of the advertising text

“Mercedes Benz Atego Line” of 2013. The results indicate that, from the linguistic, discursive and intertextual survey is possible the readability of text advertising. As new perspectives, propose to the need to deepen the studies in this area, so that we can verify the importance of rhetoric in advertising text.

KEYWORDS: Interdiscursivity. Intertextuality. Mercedes-Benz

INTRODUÇÃO

O presente artigo está situado na área de Leitura e Produção textual e  tem por tema o levantamento de aspectos linguísticos, intertextuais e interdiscursivos na legibilidade do texto publicitário “Linha Atego Mercedes Benz” .

Tem-se por pressupostos teóricos a perspectiva de Kristeva (1974), Koch (1991) e Maingueneau (1997); os estudos de Fiorin (1989) sobre os preceitos de Saussure e Jakobson; Barros sobre a Semiótica (1980) e, por critério, o ponto de vista do aluno-pesquisador.

Julia Kristeva (1974), fundamentando-se nos estudos de Bakhtin, designou o fenômeno do dialogismo intertextual como intertextualidade. Assim sendo, para ela, um texto é sempre um “intercâmbio discursivo”, uma tessitura polifônica; dessa forma, a intertextualidade é vista como a interação semiótica de um texto com outro(s) texto(s).

Nesse sentido, a intertextualidade representa um fenômeno de semiose cultural, atuante tanto nos elementos pragmáticos, semânticos e sintáticos, quanto na história e no confronto das forças ideológicas e sociais.

Segundo Kristeva (1974), todo texto se constrói com um mosaico de citações, logo, todo texto é absorção e transformação de outro texto. Para a autora, a palavra literária, por exemplo, não é um ponto, um sentido fixo, mas um cruzamento de superfícies textuais – a tarefa da semiótica literária consistirá em encontrar os formalismos correspondentes aos diferentes modos de encontro das palavras no espaço dialógico do texto. Logo, de acordo com os pressupostos da estudiosa, Intertextualidade é o diálogo de textos, pois um texto sempre está em diálogo com outro texto.

A intertextualidade, para Koch (1991), pode ser equiparada ao que se tem denominado como interdiscursividade por Maingueneau (1997), o qual afirma ser o intertexto um componente decisivo das condições de produção. Maingueneau justifica tal afirmação propondo que um discurso não vem ao mundo por si só, pois se constrói por meio de um já-dito, em relação ao qual toma posição

O interdiscurso é conceituado por Maingueneau (1997) como um conjunto de discursos que mantém uma relação discursiva entre si. Para ele, os interdiscursos pertencem a discursos precedentes com os quais um discurso particular se relaciona implícita ou explicitamente.

De acordo com Fiorin (1989, p. 31), o texto é a unidade a qual  “manifesta o pensamento, a emoção, o sentido, o significado”, é categoria existente em todas as semióticas, não só na linguística. Tal estudioso considera que, se há distinção entre discurso e texto, há, consequentemente, distinção entre interdiscursividade e intertextualidade. O termo intertextualidade, para ele, fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas o contrário não é verdadeiro. O autor complementa dizendo que pode haver relações entre textos (intertextuais) “quando um texto se relaciona dialogicamente com outro texto já constituído” (1989, p.182)

BREVE SÍNTESE SOBRE A AMOSTRA ANALISADA

Emil Jellinek, um comerciante austríaco apaixonado por carros e cliente fiel de Gottlieb Daimler, prometeu comprar 36 automóveis da Daimler-Motoren-Gesellschaft (DMG) se Daimler nomeasse o próximo motor como “Mercedes 35hp”. O nome Mercedes seria em homenagem à filha Mercedes, que significa em espanhol, Graça.

A partir disso, Daimler passou a identificar os carros encomendados por Jellinek de “Mercedes”. Jellinek participou de grandes competições e, em virtude disso, exigia cada vez mais veículos potentes e velozes; dessa forma, consagrou-se campeão automobilístico, principalmente durante a Semana de Nice.  Graças às sucessivas vitórias de Jellink, a marca Mercedes ficou famosa nos círculos automobilísticos da época e tornou-o conhecido como “Monsieur Mercedes”.

Naquela altura, as maiores rivais do setor eram a DMG e a Benz & Cia. Depois da I Guerra Mundial, devido à necessidade de dar um impulso à economia da Alemanha, essas duas empresas acordaram numa cooperação mútua. Karl Benz decidiu acrescentar o seu nome “Benz” à marca Mercedes. Adicionou uma auréola à volta da estrela e nasceu assim o famoso nome Mercedes-Benz, juntamente com o seu símbolo, o qual permanece até os dias de hoje.

A ESTRELA MERCEDES BENZ

A Estrela de Três pontas foi desenhada por Gottlieb Daimler; segundo as fontes do site Mercedes-Benz, o logotipo foi inspirado em uma figura, desenhada por ele em um postal, o qual foi remetido à sua esposa com o seguinte comentário: “Um dia essa estrela brilhará sobre a minha obra.” As três pontas representam motores para uso em terra, água e ar. Ao longo dos anos, o símbolo passou por várias alterações. Em 1923, foi inserido o círculo e três anos depois, com a fusão das empresas Daimler e Benz, foi incluída a coroa de louros. A forma definitiva foi adotada em 1933 e desde então se mantém inalterada.

OS CAMINHÕES

O meio de transporte de longa distância, na década de 1900, eram os trens; no entanto, para as distribuições no varejo, a partir das estações, recorria-se aos veículos de tração animal.

Devido ao empreendedorismo dos pioneiros Daimler e Benz, houve a criação do primeiro caminhão. Este veículo singelo e rudimentar, definido como caminhão apenas pelo objetivo de transportar carga e não pessoas, não possuía cabina, apenas um largo assento para o motorista, motor de dois cilindros; o tanque de gasolina ficava na traseira e aros de ferro cobriam as rodas. A capacidade de carga útil chegava a 1,5 toneladas. Segundo um noticiário da época “um caminhão capaz até de dar marcha à ré”. Karl Benz apresentou uma furgoneta com capacidade de carga útil de 3 (três) toneladas. Graças ao desempenho daqueles dois pioneiros automobilísticos foram revelados ao mundo o Patent-Motorwagen de Benz e a carruagem sem cavalos de Daimler.

OS CAMINHÕES DA LINHA ATEGO

Os Caminhões da linha Atego, apresentados na publicidade, são conhecidos por sua versatilidade e produtividade nas cidades e nas estradas. Esta linha é composta por caminhões médios e semipesados nas configurações 4×2 e 6×2, com PBT entre 14 e 24 toneladas, desenvolvidos principalmente para aplicações urbanas e rodoviárias de curtas a longas distâncias. A linha Atego é constituída por veículos de cores sólidas: branco, amarelo, azul turquesa, azul marinho, vermelho e preto e nas cores metálicas prata, azul jaspe, vermelho e grafite.

A linha Atego oferece vários itens, os quais colaboram para uma alta rentabilidade; assim sendo, o cliente notará os benefícios do BlueTec 5 com o aumento significativo dos intervalos de troca de óleo do motor, o alto rendimento mecânico, a extrema durabilidade e uma operação econômica.

No painel do veículo, estão disponíveis ferramentas as quais auxiliam o motorista a dirigir de maneira mais econômica: indicador de consumo instantâneo de combustível; econômetro, apontador da rotação de trabalho mais adequada do motor em cada situação de operação, otimizando, dessa forma, o consumo de combustível.

Para atender às aplicações urbanas e rodoviárias com excelência, a linha Atego oferece diversas opções de configuração para adequar o veículo à sua necessidade: são modelos plataforma e cavalo-mecânico, com quatro versões de cabinas, três opções de entre eixos, diversos itens opcionais e a maior plataforma de carga da categoria.

A PEÇA ANALISADA

A peça em análise foi publicada em outubro de 2013. Naquele ano, o Brasil vivia um momento de crescimento econômico, de grandes importações e exportações. Segundo o IBGE, o setor agropecuário no Brasil é umas das principais bases da economia. Dentre os principais itens infraestruturais, os quais demandam a exportação da atividade agrícola, estão o transporte, principalmente os caminhões.

A Mercedes Benz, tendo em vista o mercado brasileiro, lançou uma linha de caminhões, a qual pretendia assegurar a produtividade e economia para o transporte e logística no agronegócio. Os caminhões destacam suas atividades de transporte no campo por atributos como força, resistência, robustez, a nova tecnologia BlueTec 5, reduzindo, sobremaneira, o consumo de combustível e com menor custo operacional.

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ANÁLISE DO TEXTO PUBLICITÁRIO

Esta parte apresenta, a partir dos aspectos anteriormente elencados, a análise realizada.

Os símbolos

Segundo Fiorin (1989) o símbolo é um elemento concreto o qual representa um abstrato (religiões, sistemas sociais, noções). Exemplos: enquanto no ocidente a cor preta significa o luto, em algumas sociedades orientais, o branco tem esse significado; a balança significa a justiça; a cruz gamada, o nazismo.

O texto em análise conta com vários símbolos: a estrela, o selo do IBAMA, a gota, o caminhão e a linguagem corporal do modelo.

A Estrela de Três pontas: ligando-se as pontas por meio de uma linha reta, tem-se um triângulo.

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Visto que a estrela de três pontas, na amostra analisada, significa motores para uso de terra, água e ar, apresentam-se, dessa forma, os quatro elementos da natureza. O fogo, neste contexto de publicidade, seria a energia ou combustível.

Como se sabe, o fogo surge na Grécia antiga como um dos quatro elementos formadores do Universo. Segundo o filósofo Empédocles (490-430 a.C.), todas as substâncias eram formadas por terra, água, ar e fogo, em diferentes combinações. Outra noção grega para explicar o fogo é a presença de um princípio inflamável nos materiais combustíveis, mais tarde aperfeiçoado na teoria do “flogístico” ou triângulo do fogo.

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O triângulo do fogo é a representação dos três elementos necessários para iniciar uma combustão. Esses elementos são o combustível, o qual fornece energia para a queima; o comburente, substância que reage quimicamente com o combustível e o calor, necessário para iniciar a reação entre combustível e comburente.

Para Aristóteles, segundo o artigo publicado no site da USP- O éter ou nada, ainda havia mais um elemento: o éter. O éter, elemento natural do qual foram feitas as estrelas, tem um movimento circular. Assim como o círculo do logo, fechando assim, a inferência autorizada.

O formato do triângulo, na peça, se assemelha à estrela de Davi. Ao se aprofundar o contexto histórico do período da criação da estrela Mercedes-benz, verificou-se que, na mitologia judaica, o triângulo, no proto-hebraico, significa Davi. A ilustração abaixo demonstra a evolução das letras do nome Davi.

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Durante a construção dos símbolos da Mercedez-Bens, o mundo vivia em tempos de Guerra; naquela época, os judeus foram perseguidos. Assim sendo, identificou-se uma possível ligação da estrela da marca com a estrela de Davi. Invertendo-se a figura e juntando-se as duas estrelas, tem-se o símbolo do judaísmo, como demonstra a figura abaixo:

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O selo do IBAMA, na peça em análise, informa que a linha de caminhões da  Mercedes- Benz desenvolve uma série de atividades voltadas à preservação do meio ambiente e ao aproveitamento consciente dos recursos naturais.

O compromisso ambiental da empresa está presente em todas as etapas dos processos produtivos, em suas atividades administrativas e na relação com as empresas parceiras, clientes e sociedade. A Mercedes-Benz também promove o Prêmio de Responsabilidade Ambiental, cujo objetivo é aprimorar as condutas de respeito ao ecossistema.

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A gota, na propaganda em estudo, faz referência ao BlueTec 5, uma tecnologia eficaz, confiável, econômica e sustentável ao meio ambiente. O Blue tec 5 diminui o volume de emissões de NOx e ainda obtém menor consumo de combustível. Esta tecnologia inclui o uso de ARLA 32 (Agente Redutor Líquido de NOx Automotivo) no escapamento do veículo para pós-tratamento dos gases de escape por redução catalítica seletiva (SCR). O ARLA 32, que é armazenado num reservatório específico no veículo, converte o NOx em Nitrogênio puro e em vapor de água são inofensivos à natureza, melhorando, dessa forma, a qualidade do ar. Além de contribuir para o meio ambiente, esta tecnologia atende também à legislação PROCONVE- P-7. Disposto no artigo abaixo:

Art. 30 Os fabricantes e importadores de motores do ciclo Diesel ou de veículos a Diesel destinados ao mercado nacional devem apresentar ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis -IBAMA, até 31 de dezembro de 2012, relatório de valores típicos das emissões de dióxido de carbono e de aldeídos totais, bem como do consumo especifico de combustível, medidos nos ensaios de Ciclo de Regime Transiente (ETC) e Ciclo de Regime Constante (ESC) e expressos em g/kWh.

A Mercedes- Benz disposta a atender a lei, criou o “Blue Tec 5” com uma tecnologia testada e aprovada em mais de 300.000 caminhões e mais de 25.000 ônibus urbanos e rodoviários que circulam, hoje, por vários pontos do mundo. No Brasil, foram mais de 50.000 horas de testes de funcionalidade que comprovaram a robustez e a durabilidade do motor com a tecnologia BlueTec 5, possibilitando, assim, a redução da emissão de dióxido em 60% e material particulado em 80%, contribuindo, sobremaneira, para a preservação do meio ambiente.

Segundo o dicionário Michaelis (2008,p.421), gota significa uma quantidade muito pequena de um líquido que se destaca sob a forma de um glóbulo; pingo de água. Já a água significa líquido incolor e inodoro composto de hidrogênio e oxigênio.

A água é símbolo de pureza e fonte de vida, tendo um papel central em várias religiões, dentre eles o Judaísmo. Para a tradição judaica, das águas pode surgir um universo. No relato bíblico da criação, Deus cria os céus, a terra, a luz… Sua palavra não cria as águas. Para alguns místicos do judaísmo, elas já existiam, ou seja, precederam a criação. O mundo criado, Deus mobiliza e  usa as águas para fazer barro com o pó da terra e modelar o humano. Em hebraico, não existe a palavra água, no singular. Elas são sempre plural: águas, maim (mem-iud-mem), cuja pronúncia lembra, em português, a palavra mãe. Há algo de ambiguidade, de ambivalência, nessa pluralidade hídrica, nesse agá dois ó, nesse mem dois iud, como em todo envoltório materno. As águas matriciadoras, uterinas e misericordiosas, isto é, fontes da vida. Como se destaca na figura abaixo:

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A linha de caminhões Mercedes-Benz constitui de cinco modelos: Accelo, Atron, Axor, Actros e Atego. Todos os caminhões começam com a letra “A”.

Segundo o dicionário de símbolos (2009), a letra “A” é a primeira letra em quase todo os alfabetos do mundo, e tem sua origem na escrita hierática egípcia. Os fenícios renomearam a letra a (aleph) com a figura de um boi/touro. Depois, passou a ser a letra alpha, no alfabeto grego. Em seguida,  ela se tornou o  “A” romano, a qual foi transmitida às gerações que, mais tarde, adotaram o alfabeto latino. A letra “A” representa, entre os povos antigos, o número um. É assim o Aleph hebraico, o Azdos Eslavos e o Alpha grego.

A letra alfa maiúscula geralmente não é utilizada como símbolo, porque costuma ser escrita de forma idêntica à letra A latina. Já a letra α minúscula é usada como símbolo para a aceleração angular, coeficiente linear de dilatação térmica e para proporcionalidade em física.

Em astronomia, segundo o dicionário de símbolos (2009), a letra A é utilizada para indicar a estrela principal de uma constelação, também dita alfa. Esta estrela é chamado de estrela Sirius, derivado do latimsīrius e do gregoσείριος (seirios, “brilhante”). Sirius é a estrela mais brilhante no céunoturno.

A linguagem corporal do modelo, disposto ao lado do caminhão. O cérebro humano está programado para comandar as pernas para irem à direção do que desejam e para se afastarem do que não querem, ou seja, pela forma como uma pessoa usa as suas pernas, verifica-se para onde ela pretende ir. O fato de o homem estar ao lado do caminhão, com as pernas parcialmente paralelas, com o pé direito apontando para o caminhão, demonstra a direção para onde a mente e a pessoa desejam ir, neste caso, entrar no caminhão. O pé esquerdo, o tronco e a cabeça apontam no mesmo sentido, ou seja, para o receptor, sinal de uma atitude aberta e confiante.

As mãos possuem um enorme poder revelador. Nesta imagem, a mão direita está no caminhão, demonstrando que a pessoa está confiante, com prontidão e disponibilidade. Já a mão esquerda, dentro do bolso, neste contexto de compra, significa economia no bolso.

A expressão facial do modelo mostra um sorriso; este é um dos sinais de comunicação com sentido universal de  alegria e felicidade, provavlemente graças à economia, ao conforto, à segurança e sustentabilidade.

SIGNIFICADO DO NOME MERCEDES

Como se disse, o nome Mercedes significa em espanhol, Graça.

SIGNIFICADO DAS CORES

Preto

Segundo Chevalier (2009), o preto significa elegância, luxo e sofisticação. Todas as publicidades da Mercedes- Benz têm esse fundo preto, tanto na imagem publicitária quanto no site da empresa.

A cor preta é classificada como ausência de cor, enquanto para outras é ausência de luz. Pode ser obtida por meio da mistura das três cores primárias: vermelho (magenta), amarelo e azul (ciano). Esta cor simboliza respeito, morte, isolamento, medo, solidão.

De acordo com a tradição mística judaica, a morte não é o fim, senão o princípio.  O preto no judaísmo, por exemplo, não significa luto e não se costuma usá-lo para indicar este estado.

No dicionário de símbolos (Chevalier, 2009), o preto é originalmente o símbolo da fecundidade, como no Egito antigo ou no norte da África: a cor da terra fértil e das nuvens repletas de chuva. Se for preto como as águas profundas, é também porque contém o capital de vida latente, porque é o grande reservatório de todas as coisas. Homero vê o oceano como sendo preto. As grandes Deusas da fertilidade, essas velhas deusas-mães, são muitas vezes negras. Pode ser considerada a cor de proteção e o mistério da vida.

Infere-se que o fundo preto na propaganda é empregado para anunciar e estimular a compra de produtos para pessoas exclusivas. A Mercedes-Benz usa essa técnica para atrair a atenção do seu público alvo. Neste caso, o preto mostra a intensidade e intencionalidade contida na publicidade; constitui assim como um dos códigos de comunicação não verbal. O fundo preto provoca sentimento de desejo, elegância e respeito pela marca e produto.

Azul

De acordo com Chevalier (2009), a cor azul significa tranquilidade, serenidade e harmonia, mas também está associada à água, o céu e o infinito. O azul é uma cor que se relaciona com a parte mais intelectual da mente. Esta é considerada a mais profunda das cores, no qual, o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpétua fuga da cor.

Segundo a mitologia egípcia, o azul era considerado como a cor da verdade. Para os egípcios, a verdade, a morte e os deuses sempre estão juntos. Esse azul sacralizado – o azul-celeste é o campo Elísio, o útero através do qual abre seu caminho à luz de ouro que exprime a vontade dos deuses: Azul-Celeste e Ouro, valores respectivamente feminino e masculino. O azul escuro é também a cor de Nut, deusa egípcia da noite, que representa sabedoria.

Já na mitologia judaica, a cor azul celeste se assemelha ao mar, por sua vez, a cor do mar se assemelha àquela do céu, onde se encontra o trono do Eterno. O Azul era a cor do Rei David, o líder mais importante do povo judeu.

Azul é a cor de Kwan Yin, deusa oriental da Misericórdia, e Maria, mãe de Jesus. Seus mantos azuis simbolizam sua conexão superior, assim como a devoção eterna e sabedoria espiritual. A cor azul simboliza lealdade, devoção, amizade e verdade; muitas forças militares no mundo usam uniformes azuis para inspirar confiança.

Na imagem da publicidade em estudo, a gota é representada em azul e o caminhão na cor amarela, conotativamente à mitologia egípcia, a cor azul-celeste e ouro, valores respectivamente feminino e masculino. Verifica-se a interdiscursividade mística judaica referente à cor azul com a imagem da peça em análise.

Amarelo

O amarelo é uma cor brilhante, alegre, que simboliza o luxo, a riqueza, o dinheiro e o ouro. O dicionário dos símbolos (Chevalier, 2009) define o amarelo como os raios do Sol, atravessando o azul celeste, os quais manifestam o poder das divindades. O amarelo é a cor dos deuses: significa astro de ouro brilhante, liberal, astro vivo; portanto, o caminhão amarelo é o objeto de cor mais expansiva e mais brilhante das cores, assim como os raios do Sol, atravessando o azul celeste, (da gota) manifestando, dessa forma, o seu poder.

O caminhão Atego amarelo demonstra seu poder, evidenciando a robustez dos caminhões; representa um veículo forte, potente, resistente, compacto e autêntico. A cor amarela, que simboliza também o luxo, para quem deseja brilhar como uma estrela.

Branco

A cor branca representa a pureza. É a cor mais protetora; contribui à paz e ao conforto; alivia a sensação de desespero e de choque emocional; ajuda a limpar e aclarar as emoções, os pensamentos e o espírito.

Essa cor sobre o fundo preto, no texto em análise, age sobre a mente, ligando-se diretamente às funções ópticas e neurológicas; pois a cor branca transmite a sensação luminosa no cérebro, de objetividade e clareza.

SIGNIFICADO DOS NÚMEROS

Na numerologia, os números são considerados como símbolos muito significativos por quase todas as civilizações.

Os discursos de numerologia pesquisados são: o número 3, total de símbolos: a gota, o caminhão e o modelo; e o número 5, o qual faz referência ao BlueTec 5.

Segundo Pitágoras, o número três significa agradável e talentoso. O símbolo para este número é o triângulo; a cores predominantes são: lilás, violeta e azul-celeste e o elemento é o ar.

Como se disse, a estrela de três pontas forma um triângulo assim como o símbolo desse número. A gota, representada como uma das três imagens mencionadas, também está na cor azul-celeste.

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O número três associa-se à comunicação, expressão, expansão, criatividade e sociabilidade. Representa o relacionamento com o mundo exterior. Depois da  individualidade, a união com o dois, surge à interação com a sociedade. O que comunica. O três é a expressão, a comunicação, a criação. É o produto da união de 1 e 2. É a frutificação, a trindade, a multiplicidade. Na espiritualidade, o número três é visto como o poder da unidade entre a mente, corpo e espírito.

Constitui ainda a expressão do sucesso, da sorte, da fertilidade e da beleza. É feliz, criativo, intelectual e otimista. Também é refinado e gosta de coisas caras. Mesmo que em alguns momentos pareça dispersivo, na verdade é muito observador e registra tudo o que se passa à sua volta. Nesse sentido, pode inferir com o caminhão Atego, na cor amarela, a qual representa o brilho, a alegria, elementos necessários também para a obtenção do sucesso.

O número 5 também é apresentado na imagem em análise, referente ao BlueTec 5. Esta tecnologia passa por cinco etapas para diminuir a poluição do ar, tornando assim, o meio ambiente mais sustentável. Neste processo, usa-se o produto Arla 32, que é um agente redutor líquido de NOx. Somando-se 3+2, têm-se 5.

O número cinco é o símbolo de união, número nupcial, segundo os pitagóricos; número, também, do centro da harmonia e do equilíbrio.  Assim como os cinco elementos de Aristóteles, citados na simbologia da estrela do logo Mercedes Benz: terra, água, ar, fogo e éter.

Como se disse, a Mercedes Benz possui cinco linhas de caminhões, cujos nomes iniciam-se com a letra “A”, que significa para os gregos alpha, utilizada para indicar a maior estrela da constelação; Mercedes, por sua vez, significa “GRAÇA” em espanhol, também com cinco letras.

DISPOSIÇÃO DA IMAGEM NA PÁGINA

A publicidade e principalmente a disposição da imagem são fatores estratégicos na diferenciação entre várias empresas, dentro de mercados cada vez mais competitivos. Tendo em vista esse panorama, constata-se a importância do poder da imagem publicitária para atingir seu público alvo.

Todo anúncio publicitário tem como objetivo chamar a atenção, despertar o interesse, provocar o desejo, levar à memorização e desencadear a ação. Um dos meios estratégicos são os pontos áureos, para determinar onde situar os elementos registrados em uma imagem. Os Pontos Áureos estão localizados na intersecção das linhas horizontais e verticais desenhadas, dividindo largura e altura por três. Seguem os pontos áureos da imagem publicitária impressa:

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Segundo Dondis (2003), são elementos básicos de toda comunicação visual: os pontos, a disposição geográfica da imagem, a cor e a informação. Para esse autor, as pessoas ao visualizarem a imagem publicitária tendem a organizar as percepções a partir de dois planos, o da figura, que constitui o elemento central da atenção, e o do fundo, que é diferenciado. Geralmente, representam contraste.

Na amostra em análise, o ponto de atração está centralizado na imagem que encontra o caminhão dentro da gota de água, em contraste com o fundo preto.

A disposição geográfica dos objetos organiza a sua interpretação, no caso, a gota aponta a mensagem que deseja passar para o receptor: “Linha Atego Mercedes- Benz. Mais economia para quem tem estrela brilhar ainda mais”.

Neste anúncio, pode-se observar a presença de cores: o fundo preto, as letras brancas, a gota azul e o caminhão amarelo.

A informação do produto está no mesmo sentido da leitura, ou seja, da esquerda para a direita e de cima para baixo. O lado direito, olhando-se de frente para a peça, é considerado a parte racional, sugerindo a relevância do produto, por ser econômica e ecologicamente mais eficaz.

O logotipo da Mercedes Benz está no lado direito e na parte inferior da página, estrategicamente colocado onde o polegar do leitor terá que segurar a página antes de virar para a próxima, indicação geográfica de certificação do produto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos elementos textuais levantados, esta parte contém considerações acerca da leitura realizada. Como se disse, para se adequar à nova legislação ambiental, a Mercedes-Benz reformulou toda linha de veículos comerciais, inclusive a linha Atego, a qual dispõe da exclusiva tecnologia BlueTec5. O caminhão da linha Atego é reconhecido na propaganda pela alta qualidade, flexibilidade de aplicações, resistência, durabilidade, reduzido consumo de combustível e menor custo operacional. Ao mesmo tempo em que a publicidade adota procedimentos para convencer, as imagens provocam impacto no leitor.

A fim de surpreender os clientes e admiradores com serviços à altura da marca representada pela estrela, o anúncio publicitário é fundamental para persuadir o seu público alvo. A leitura da disposição da imagem foi essencial para saber pontos importantes do layout, justificando-se assim o conhecimento dos pontos áureos na organização textual.

A disposição, as cores, os símbolos, a estética da imagem conjugadas pela empresa produzem uma reação de curiosidade no receptor, além daquilo que é representado como veículo sustentável. Um desejo de saber qual é a mensagem das imagens da gota e o caminhão, ou ainda, como a gota pode suportar o peso de um caminhão?

Por meio dos discursos mitológicos, foi possível concluir que o fundo preto representa a imensidão do útero materno, prestes a nascer algo novo. Algo novo, que se encontra dentro de uma gota, metaforicamente, dentro de um útero, sendo a água o líquido amniótico. O caminhão Atego na cor amarela é o produto prestes a nascer, encontrando a luz, o dia, o sol.

Antes de nascer o sol, já brilha uma luz; é na escuridão da noite que as estrelas brilham com mais intensidade. Visto que a estrela mais brilhante do céu noturno é Sirius, que deriva do latim sīrius e do gregoσείριος (seirios, brilhante).

Como se disse, em astronomia, a letra “A” é utilizada para indicar a estrela principal de uma constelação, dita alfa Sirius. O slogan desta empresa firma ainda mais esse desejo de consumo: “Para quem tem estrela brilhar ainda mais”.

O contexto dessas imagens influenciou a percepção destes pesquisadores, principalmente os símbolos da gota e do caminhão em relação ao seu fundo, que, por meio dos dados pesquisados, infere-se o místico. Nesse sentido, aparece a linguagem ambígua da publicidade, a qual permite várias leituras, dentre elas, a interpretada pelos pesquisadores desta amostra.

Distinguem-se dois níveis fundamentais, a denotação e conotação. A palavra estrela no sentido conotativo insere o caminhão ao lado de quem deseja alcançar o sucesso, ou seja, ser uma estrela.

A marca Mercedes Benz é reconhecida mundialmente pela estrela de três pontas, para motores de uso em terra, água e ar. Com base nos interdiscursos, verificou-se que a estrela pode ter forte ligação à estrela de Davi, ou diretamente ao judaísmo; constatou-se interdiscursivamente os cinco elementos da natureza, segundo o filósofo grego Aristóteles.

Ao se tratar do código verbal, a disposição é esteticamente harmônica; possui equilíbrio e regularidade, como se fosse uma leitura. É importante enfatizar os interdiscursos na amostra em estudo, os quais se revelam como uma forma de comunicação aplicada, específica e dirigida, que alcança sua eficácia persuasiva graças ao uso adequado dos recursos das linguagens.

Assim sendo, acredita-se que o texto em análise, enquanto publicidade, atingiu os objetivos de informar e transmitir as características do caminhão Atego, por meio dos recursos das linguagens e recursos visuais, despertando, com isso, o interesse nos consumidores de público alvo, a fim de desejar o produto apresentado.

Finalmente, somente por meio de um profundo conhecimento teórico e investigativo é possível obter uma leitura crítica de textos publicitários, como ora apresentada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acesso em: 18/07/2014.

 

 

 

ADMINISTRAR ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR

ADMINISTRAR ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR
Estudo de Caso: CASA CRESCER E BRILHAR

MANAGING THE THIRD SECTOR ORGANIZATIONS
Case Study: HOME GROW AND SHINE

ANA LÚCIA RIBEIRO MARTINS

Graduação em Administração
pela UNIBR Faculdade de São Vicente-SP
analuciamartins75@hotmail.com

FABIANA CRISTINA DA S. ROCHA

Graduação em Administração
pela UNIBR Faculdade de São Vicente-SP
fabi.rocha.andrade@gmail.com

JOYD MARA VIEIRA FERREIRA

Graduação em Administração
pela UNIBR Faculdade de São Vicente -SP
joyd.mara@hotmail.com

ROSIMEIRE AYRES

Mestre em Administração – Unimonte
UNIBR Faculdade São Vicente- SP
rosimeireayres@terra.com.br

RESUMO

O Terceiro Setor é composto por Organizações Não Governamentais- ONGs. Um exemplo de Associação do Terceiro Setor, estudo de caso do presente trabalho, é a Associação Casa Crescer e Brilhar na cidade de São Vicente. A Casa Crescer e Brilhar acolhe crianças e adolescentes, afastadas do convívio familiar por enfrentarem problemas dos quais devem ser preservadas, devendo, entretanto,  retornar às suas casas quando os entraves forem sanados. O acolhimento das crianças e adolescentes de ambos os sexos, inclusive crianças e adolescentes com deficiência é provisório, como medida de proteção ou em situação de risco pessoal e social, cujas famílias ou responsáveis encontram-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção. Atualmente a associação desenvolve diversos planejamentos administrativos e projetos junto à sociedade civil para a captação de recursos para sua sustentabilidade.

PALAVRAS-CHAVE: Casa Crescer e Brilhar. Terceiro Setor. Instituição Não Governamental.

ABSTRACT

The Third Sector is composed of Non-Governmental Organizations (NGOs). An example of such association, which presents the Third Sector, and is object of a case study in this pages, is the Association Home Grow and Shine in São Vicente city. The Institution Home Grow and Shine help children and teenagers went away from their families for being on extreme situations, which they should not, and return to their homes when those barriers has been removed. The shelter must be temporary and exceptional for children and teenagers of both genders, and even children and teenagers with special conditions, providing safety in risky, personal and/or social situations, the families or responsible to be incapable of fulfill its functions of care and protection.Currently the association implements several administrative planning and develops projects with civil society in order raise money searching for sustainability.

KEYWORDS: Home Grow and Shin.Third Sector.Non Governmental Institution.

INTRODUÇÃO

Até o final do século XIX, o atendimento à infância era realizado principalmente pela Igreja ou por meio de ações de caridade. No início do século XX, reflexões referentes às condições da infância são discutidas em meio aos juristas, médicos e advogados. Só a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA em 1990, a legislação reconhece a criança como cidadã e os direitos fundamentais ao seu desenvolvimento, tornando-se prioridade nas ações do ESTADO, mais especificamente, nas políticas de proteção social dedicadas às crianças internas em abrigos, devido ao abandono dos pais ou como medida judicial de proteção. Por essa razão, menores em situação de risco, ou seja, quando a família biológica não consegue suprir o atendimento integral ao filho, deixando-o em situação de risco social e/ou pessoal, é necessária a intervenção da sociedade e do Estado.

A sociedade pode e deve intervir organizando-se em associações, organizações não governamentais e demais instituições da sociedade civil como a Igreja, associações de bairro, entre outras. O Estado também tem esse poder e dever e intervém muitas vezes com a aplicação da Medida de Proteção de Abrigo, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente como uma medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a inserção em família substituta, ou retorno à família biológica.

Em São Vicente-SP, a Casa Crescer e Brilhar contribui com a sociedade na validação da Medida de Proteção e Abrigo para crianças e adolescentes com problemas familiares e judiciais.

O presente estudo de caso tem como objetivo apresentar o papel e a finalidade da Casa Crescer e Brilhar, na cidade de São Vicente, como abrigo de crianças com problemas familiares e judiciais, bem como identificar quais ações estão sendo desenvolvidas em prol da sustentabilidade organizacional. Trata-se de uma pesquisa documental, bibliográfica e estudo de caso, envolvendo, como se disse, a Instituição Casa Crescer e Brilhar, localizada na cidade de São Vicente, realizada durante o segundo semestre de 2014. A entidade foi escolhida devido a uma das integrantes do grupo conhecer a instituição, e o grupo reconhecer a relevância do trabalho desenvolvido em tal instituição, bem como a pertinência para os estudos do curso de administração de empresas. As pesquisas foram realizadas nas legislações vigentes, livros, internet, entrevista e questionário aplicado aos responsáveis pela instituição, observação direta na entidade com visitas ao local, além de fotos e informações obtidas do site oficial da instituição. Este artigo traz uma síntese da pesquisa realizada.

Para a ONU- Organização das Nações Unidas, citada pelo Portal Voluntários (2015): “voluntário é o jovem ou adulto, que devido ao seu interesse pessoal, e ao seu espírito cívico, dedica parte de seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividade, organizadas ou não, de bem-estar social, ou outros campos”.

Segundo Scheunemann (2013, p. 31)“o Terceiro Setor é um conjunto de entidades sem finalidades lucrativas, unidas em prol do bem social”. Já para Gerome (2008), esse setor social pode ser definido da seguinte forma:

A parte da sociedade civil (sic), através de pessoas jurídicas de direito provado sem fins econômicos, são executadas ações de caráter altruísta, ou de prestação de serviços, sem intuito de lucro, voltadas sobretudo, para o desenvolvimento holístico e sistêmico do indivíduo, da família, das instituições, e das políticas públicas sociais, sendo essas ações não exclusivas do estado e não essenciais ao mercado (GEROME, 2008, p.8).

O ESTUDO DE CASO

A casa Crescer e Brilhar é uma Organização Civil de direito privado, sem fins lucrativos, cujo objetivo é acolher crianças e adolescentes em situação de risco, conforme diretrizes da lei federal nº 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na realidade, estamos vendo que a sociedade começa a tomar consciência de que também é responsável por essa desigualdade social, não esperando que apenas o poder público participe desse processo que visa à solução dos problemas sociais (GUZZO, 2003 p. 34).

Fundada em 29 de outubro de1974, foi denominada inicialmente Casa de Triagem e Recuperação de Menores. Em junho de 1983, o nome foi alterado para Casa do Menor de São Vicente; em setembro de 2004, recebeu a denominação atual. O serviço de acolhimento passou a denominar-se “Casa Crescer e Brilhar”, em 14 de setembro de 2004 e a política social adotada nos últimos 10 anos (dez) visa garantir aos residentes acolhidos, graças à missão e crença dessa organização, a dignidade por meio da fonte da cidadania. No 2º semestre de 2014, a instituição encontrava-se com um total de 18 (dezoito) acolhidos, conforme gráfico 1.

Gráfico 1- Crianças e Adolescentes Atendidos/Acolhidos
Fonte: Elaborado pelos autores

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ESTRUTURA ORGANIZACIONAL: Quadro de Colaboradores

O organograma da estrutura organizacional, desenhado na figura 1, conta com 31 pessoas, compostas pela Diretoria (Conselho de Administração, Conselho de Profissionais e Comissões), 6 (seis) colaboradoras voluntárias, do Projeto Bem Me Quer e 22 colaboradores registrados pela CLT.

Um organograma é uma técnica de representação gráfica da estrutura organizacional, a qual define a ordem hierárquica e as funções existentes na instituição. Conforme Masiero (2012, p. 66), “a organização funcionalmente estruturada é caracterizada pela especialização. Cada área e cada profissional possuem um conjunto de deveres e responsabilidades”, ou, como afirma Chiavenato (2001, p. 251), “o organograma é o gráfico que representa a estrutura formal da empresa.” Sua estrutura é dividida com base em seus objetivos de trabalho e funções. O Conselho possui toda a autoridade para auditar, deliberar e definir estratégias e tomar decisões, e, apesar de não revelar os relacionamentos informais, traduz a divisão do trabalho e as posições existentes nas organizações, seu agrupamento em unidades e a autoridade formal (MINTZBERG, 2003, págs. 274-277). Para Rebouças (2009, p. 75) “autoridade é o direito estabelecido de se designar o que- e, se necessário, como, por quem, como e por quanto- deve ser realizado em sua área de responsabilidade na empresa”.

Figura 1: Organograma da Instituição
Fonte: Elaborado pelos autores
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ESTRUTURA FÍSICA DA INSTITUIÇÃO

A instituição Casa Crescer e Brilhar conta com 3 (três) amplos dormitórios para os meninos, 2 (dois) amplos dormitórios para as meninas. O local (figura 2) pertence ao Rotary Clube de São Vicente e foi cedido para a Casa Crescer e Brilhar aos longos desses anos, sem nenhum ônus.

Figura 2: Fachada da Instituição
Fonte: Elaborado pelos Autores

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Para os horários de lazer, possui um Playground e uma quadra de esportes, recentemente reformados pela CPFL, como mostra as figuras 3 e 4.

Figura 3: Área de lazer playground
Fonte: Elaborado pelos autores
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Figura 4 – Quadra Esportes
Fonte: Elaborado pelos Autores

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Possui uma horta comunitária- figuras 5, na qual os residentes com a ajuda dos Educadores Sociais aprendem a cultivar hortaliças. Eles plantam, revezam para a colocação da água necessária e colhem para que as Educadoras da cozinha façam o almoço, aproveitando-se, dessa forma, da terapia de mexer na terra e valorizar o alimento do dia a dia. A Horta faz parte do Projeto Residente. No Refeitório, são servidas as principais refeições: café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. A instituição recebe doações de mantimentos de mercados, da prefeitura de São Vicente e de parceiros. As refeições são preparadas na própria instituição e oferecidas aos internos.

Figura5: O Processo na horta
Fonte: adaptado de www.casacrescerebrilhar.org.br

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O Bazar é um brechó, realizado com as doações recebidas de roupas e eletrodomésticos em bom estado; esses objetos são vendidos e a renda é revertida para instituição, conforme figuras 6 e 7.

Figura 6: Bazar
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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Figura 7– Interior do Bazar
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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A Sala de Informática, figura 8, foi criada para as crianças realizarem pesquisas e para o lazer; os computadores foram doados pela comunidade e pelas empresas.

Figura 8: Sala de Informática
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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A  sala de TV e jogos, figura 9, está disponível para utilização no período da tarde.

Figura 9: Sala de TV e Jogos
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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PROJETOS DESENVOLVIDOS

Os projetos da instituição têm por objetivo levar cultura à comunidade, proporcionando, com isso, inúmeras possibilidades de aprendizado. Conforme o Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura, nos termos das Leis Federal n° 8666/93, e n° 8.313/91, IN/STN 01/97, Lei Municipal 2020-A de 18 de julho de 2008, o projeto Aldeia das Artes foi assinado em 20 de setembro de 2010 pelo prefeito de São Vicente – Tércio Garcia e o secretário de Cultura Renato Caruso e a instituição. As comunidades dos bairros Vila Jóquei Clube, Sambaiatuba e adjacência dispõem de inúmeras possibilidades educadoras.

  • Projeto Rendendo-se à Arte: A natureza do projeto é oferecer atividades socioeducativas participativas, com desenvolvimento de habilidades para a inserção no mercado de trabalho e a geração de renda com a ampliação da autonomia. Pretende-se com a participação das famílias inseridas em atividades artesanais ampliar a oportunidade de transformar o capital humano, social e produtivo em alternativas de geração de renda, promovendo, dessa forma, o desenvolvimento local.

A figura 10 representa a oficina de fotografia oferecida por parceiro local à comunidade .

Figura 10- Oficina de Fotografia
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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Na oficina Africanidade, os abrigados apreendem sobre a cultura da África; realizam danças, capoeiras e tocam instrumentos musicais para acompanhar as atividades, conforme, figura 11.

Fig 11- Oficina de Africanidade Capoeira
  Fonte: site Casa Crescer e Brilhar
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  • Projeto Bem Me Quer: Os projetos funcionam de 2ª feira a 6ª feira em horário comercial, O atendimento é domiciliar, realizado por 1 (um) Assistente Social e 2 (dois) Psicólogos.Contemplado em Abril de 2013 na Seleção Pública Nacional de Projetos doPrograma Petrobras Desenvolvimento & Cidadania por 02 (dois) anos. Atende anualmente 160 mulheres com 20 famílias conveniadas.

Tem como objetivo a melhoria da qualidade de vida de mulheres em situação de vulnerabilidade social (incluindo as mulheres do sistema prisional), do município de São Vicente, Estado de São Paulo, de modo pontual, na reabilitação psicossocial, para que suas ações de trabalho sejam autossustentáveis, visando à qualificação para o trabalho por meio de oficinas profissionalizantes e atendimento psicoterapêutico, tendo como meta a geração de renda e oportunidade de trabalho a partir de suas próprias iniciativas.

O eixo norteador da inclusão e a proteção social dessas famílias estão na viabilização e articulação com os serviços de assistência social, desenvolvendo suas ações de forma diária e sistemática.

No espaço Projeto Bem me Quer, figura12, são realizadas oficinas profissionalizantes de Cabeleireiro e Artesanato e atendimento psicológico em grupo nas dependências da Crescer e Brilhar; na Cadeia Feminina são realizados atendimentos psicológicos em grupo e individual e oficina de artesanato para geração de trabalho e renda.

Figura 12: Espaço Projeto Bem Me Quer
Fonte: site Casa Crescer e Brilhar

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Os alunos de artesanato aprendem e efetuam suas confecções, conforme fig.13, e as vendas são revertidas para benefício próprio.

Figura 13: Artesanatos Confeccionados
Fonte: adaptado www.bemmequerprojeto.blogspot.com.br/
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  • Projeto Estação da Vida: O projeto Estação da Vida nasceu em 2009, em parceria com o CAMP-SV/CAMP-RB, sendo orientado por 1 (uma) Administradora e 1 (uma) Assistente Administrativa. O objetivo do projeto é preparar o adolescente a partir dos 15 anos para descobrir as competências e habilidades básicas, essenciais, em todas as instâncias da vida em comunidade e do mundo ocupacional, visando o seu desligamento do abrigo com qualidade, e a sua preparação para a vida adulta. Atualmente 5 (cinco) adolescentes participam desse projeto.

 

 CAPTAÇÃO DE RECURSOS

De acordo com Tisel (2011), as organizações de Terceiro Setor contam com as doações para o financiamento de seus custos operacionais, programas e projetos. Portanto, em seu dia a dia, ao receberem uma promessa de doação, seja pura e simples ou com encargos, devem consolidar a hipótese por escrito. Caso contrário, a segurança jurídica da relação será comprometida, tornando-se impossível comprovar a promessa de doação, dificultando a exigibilidade do prometido.(TIISEL 2011, p.11)

Entre as ações desenvolvidas pela instituição na captação de recursos para sua sustentabilidade, destacam-se:

  • Associações e parcerias com empresas, empresários, profissionais liberais, escolas, clubes, faculdades, supermercados, sindicatos e doadores mensalistas;
  • Notas Fiscais Paulistas de pessoas que não registram seus CPF em suas compras, doando suas notas fiscais e depositando-as em uma urna no supermercado Luanda;
  • Convênio com o Município, Estado e Governo Federal, sendo a verba repassada para o RH;
  • Mercado Jangada, Supermercado Extra e Mesa Brasil que ajudam 3 vezes por semana a instituição com mantimentos;
  • Bazares com vendas de produtos em seu Brechó;
  • Participação em eventos como quermesse, onde a verba arrecadada que toda da instituição.

É importante que as organizações busquem sua sustentabilidade envolvendo vários financiadores, governo, empresas, fundações, sócios, além de geração de recursos próprios. Se este sistema é bem planejado, tem-se sempre a garantia de continuar existindo, mesmo que uma das fontes de financiamento deixem de contribuir. (CRUZ; EXTRAVIZ, 2000, p. 24)

Nas captações de recursos da Casa Crescer e Brilhar, gráfico 2, observa-se que a maior representatividade vem de convênios, mas no conjunto, todas as ações são importantes.

Gráfico 2- Captação de Recursos em 2014
Fonte: Elaborado pelo grupo

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MARKETING

O trabalho de divulgação e Marketing é feito por meio da Web Site da Instituição, sendo realizado também mediante folder, eventos e reuniões, bem como divulgações em blogs e YOUTUBE. Seguem os endereços eletrônicos.

  • https://www.facebook.com/pages/Bem-Me-Quer/1404546279783737?ref=hl
  • blog:http://bemmequerprojeto.blogspot.com.br
  • pontodeculturacasacrescerebrilhar.blogspot.com
  • casacrescerebrilhar.org.br

AÇÃO DE RESPONSABILIDADE SOCIAL POR ALUNOS DA UNIBR SÃO VICENTE

No último semestre de 2014, alunos do 8º. Ciclo diurno foram padrinhos e responsáveis pela divulgação da instituição na UNIBR São Vicente e no facebook. Os discentes visitaram a instituição e puderam conhecer melhor todo o funcionamento organizacional e administrativo, bem como necessidades e dificuldades que uma empresa do terceiro setor enfrenta.

Durante a divulgação da instituição na UNIBR, os alunos coletaram brinquedos aos atendidos pela instituição, conforme figuras 14 e 15. A entrega oficial ocorreu no Fundo Social de Solidariedade de São Vicente.

Figura 14: Arrecadação dos brinquedos
Fonte: Elaborado pelos autores
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Figura 15: Entrega das Arrecadações
Fonte: Elaborado pelos autores
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A coleta de brinquedos foi realizada na Campanha de divulgação da X Feira de Negócios, sob a organização dos componentes do 8º ciclo do curso de Administração, com a participação de professores e alunos do curso. A sensibilização para a doação ocorreu com cartazes e inserções no portal da UNIBR durante todo o período da campanha em setembro de 2014, conforme figura 16.

Figura 16 – Campanha Doação Brinquedos
Fonte: Elaborada pelos autores.
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Como resultados da campanha, foram doados 751 brinquedos para 9 (nove) entidades beneficentes da cidade de São Vicente, conforme figura 17, ilustrando os brinquedos empacotados para entrega às instituições no Fundo Social de Solidariedade. As Dezoito crianças acolhidas em 2014, pela instituição Casa Crescer e Brilhar, receberam brinquedos no mês de outubro 2014.

Figura 17:- Campanha Brinquedos X Feira Negócios
Fonte: Elaborada pelos autores
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Casa Crescer e Brilhar possui uma longa história em acolhimento de crianças e adolescentes e, tem como missão, “Enfrentar o grande desafio de acolher crianças e adolescentes em vulnerabilidade e risco social”.

A instituição necessita constantemente da contribuição de doadores, parceiros e associados para que juntos possam contribuir para o sustento econômico-financeiro da instituição. Os projetos e ações constantes de sustentabilidade, sendo bem administrados, possibilitam a existência de uma ONG financeiramente saudável. As vivências nos bairros com a aplicação dos projetos se constituem em um espaço cultural de aprendizagem permanente junto à comunidade.

A coleta de doações realizada pelos alunos da UNIBR foi um sucesso, sendo entregues brinquedos para todas as 18 crianças acolhidas do período de 2014.

De acordo com os objetivos que direcionaram a pesquisa, constata-se que os mesmos foram trabalhados neste estudo, havendo contribuições para a área de discussão a respeito de sustentabilidade organizacional, do ponto de vista econômico-financeiro e social. Nesse sentido, acredita-se que tanto a pesquisa, a campanha e a vivência na Casa Crescer e Brilhar proporcionaram aos graduandos momentos de reflexão sobre a importância da ação social, do envolvimento da sociedade, comunidade e das organizações empresariais para a contribuição a essas empresas Organizações não governamentais- ONGs.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

CRUZ, Célia; ESTRAVIZ, Marcelo. Captação de diferentes recursos para organizações da sociedade civil. São Paulo: Global. 2000.

GEROME, A. de. Como criar e manter uma ONG. Curitiba: PUC, 2008. Apostila.

GUZZO, Rossilene Araújo. Terceiro Setor: um caminho para o fortalecimento da responsabilidade social. Belém: Edições do Autor, 2003.

MASIERO, Gilmar. Administração de Empresas: teoria e funções. São Paulo: Saraiva, 2012.

MINTZBERG, H. Criando Organizações Eficazes- estrutura em cinco configurações. São Paulo: Atlas, 1995.

REBOUÇAS, Djalma de Pinho. Sistemas, Organização e Métodos: uma abordagem gerencial. São Paulo: Atlas. 2009.

SCHEUNEMANN, Arno Vorpagel. Administração do Terceiro Setor. E.Book. Curitiba: Intersaberes. 2013.

DOCUMENTOS ELETRÔNICOS

BRASIL. Lei n.9.608 de 18 fevereiro de 1988. Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9608.htm> Acesso em 02 out 2015.

CORRULLÓM, M. O que é voluntariado. Disponível em <Erro! A referência de hiperlink não é válida.

Casa Crescer e Brilhar. Projeto Bem Me Quer. Disponível em: <http://bemmequerprojeto.blogspot.com.br/>.  Acessado em 02 out 2015.

_____________________. Quem Somos. Disponível em: <Erro! A referência de hiperlink não é válida. Acesso em 02 out 2015.

_____________________.Projeto Bem Me Quer. Disponível em: <https://www.facebook.com/pages/Bem-Me-Quer/1404546279783737?ref=h>. Acesso em 02 out 2015.

_____________________. Ponto de Cultura. Disponível em <www. pontodeculturacasacrescerebrilhar.blogspot.com>. Acesso em 02 out 2015.

TIISEL, Danilo Brandini. Captação de Recursos para o Terceiro Setor. Disponível em: <http://www.oabsp.org.br/comissoes2010/direito-terceiro-setor/cartilhas/ captacao> acessado em 07 jan 2915>. Acesso em 02 dez 2014

TRIBUTO A PLÍNIO MARCOS – 80 ANOS MARGINAIS

TRIBUTO A PLÍNIO MARCOS – 80 ANOS MARGINAIS

TRIBUTE TO PLÍNIO MARCOS – 80 MARGINALS YEARS

 

SERGIO MANOEL RODRIGUES

Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP
UNIBR-Faculdade de São Vicente-SP
semaronet@ig.com.br

RESUMO

Este artigo tem como objetivo traçar um breve histórico biográfico do dramaturgo Plínio Marcos, bem como descrever algumas particularidades de sua produção teatral. Como parte das homenagens prestadas ao referido autor por conta dos 80 anos que completaria neste ano, o presente estudo faz um tributo à dramaturgia pliniana, relatando alguns pontos que fizeram com que a mesma fosse considerada por muitos como marginal.

PALAVRAS-CHAVE: Plínio Marcos. Dramaturgia. Marginalidade.

ABSTRACT

This article aims to outline a brief biographical history of playwright Plínio Marcos, as well as describing some peculiarity of his theatrical production. As part of the tributes paid to the author on behalf of 80 years to complete this year, this study makes a tribute to pliniana dramaturgy reporting some points that have the same were regarded by many as marginal.

KEYWORDS: Plínio Marcos. Dramaturgy. Marginality.

INTRODUÇÃO

No teatro nacional, o nome de Plínio Marcos tem bastante relevância, pois graças a ele personagens marginalizadas passaram a participar da dramaturgia brasileira. Por meio de uma linguagem a qual agride aos mais conservadores, as peças teatrais de Plínio evidenciam também a forma como as personagens marginais se expressam, o que causou polêmica na época em que essas obras foram encenadas pela primeira vez; entretanto, de acordo com Contreras (2002), o espectador/leitor para compreender o universo de Plínio necessita despir-se da carga literária que traz consigo, dos preconceitos e do conservadorismo imposto pelas elites, para poder apreciar e se envolver com o mundo marginal recriado pelo dramaturgo.

Mesmo censurada e interditada pela ditadura militar brasileira, a produção teatral de Plínio Marcos lançou obras consagradas pelo público e pela crítica, tais como: Dois perdidos numa noite suja (1966), Navalha na carne (1967), O abajur lilás (1969) e A mancha roxa (1988)¹, que, assim como toda obra pliniana produzida entre as décadas de 1960 e 1980, não devem ser vistas como produções literárias arraigadas em um determinado tempo histórico; pelo contrário, seus textos ainda têm muito para ser revelado nos dias de hoje, pois as temáticas abordadas pelo dramaturgo permanecem bastante atuais, como se verá adiante.

Assim, expostas essas primeiras considerações acerca do teatro de Plínio Marcos, cabe elucidar que a proposta do presente artigo é homenagear o referido autor, traçando um breve histórico de sua vida e obra, haja vista que em setembro de 2015 Plínio completaria 80 anos de existência; e, em meio a tantos tributos prestados durante o corrente ano, nada mais justo do que esta homenagem como forma de apresentar Plínio Marcos e sua obra aos leitores desta revista.

DO MACUCO PARA OS PALCOS

Plínio Marcos de Barros, o figurinha difícil, como era conhecido, ou o palhaço, como gostava de ser apresentado, nasceu em 29 de setembro de 1935, em Santos/SP. Viveu parte de sua vida no Macuco, bairro santista, situado entre o centro comercial e a região portuária, onde se concentra a maioria dos armazéns, bares, cortiços, pensões e prostíbulos da cidade, principais locais que serviram de inspiração para suas tramas.

Diferentemente do que se diz, o dramaturgo não teve uma infância pobre ou era analfabeto; pertencia à classe média e estudou em escola particular, porém não gostava de frequentar as aulas, devido às punições que sofria dos professores pelo fato de ser canhoto. Exerceu várias profissões, tais como funileiro, camelô, jogador de futebol, bancário, ator, segurança e, enfim, autor teatral; no entanto, o mundo do circo fez dele um apaixonado pela vida artística: nesse ambiente mágico, conheceu uma de suas primeiras namoradas, porém como o pai dela só permitia namoro com pessoas de circo, Plínio resolveu seguir aqueles artistas circenses, iniciando sua carreira como palhaço, o que o levou a tomar gosto por ouvir e por contar histórias para o público (MENDES, 2009).

Como dramaturgo, cronista e jornalista em diversos jornais brasileiros, como Última hora, Folha de São Paulo, Pasquim, Jornal do povo, Jornal de Curitiba e Jornal da orla, Plínio relatou várias de suas experiências, vividas nas ruas, nos campos de futebol, no picadeiro. Suas tantas ocupações o colocaram diante dos mais variados tipos humanos, sobretudo daqueles que habitavam a beira do cais do porto e a zona do baixo meretrício da cidade de Santos.

Auto denominando-se “repórter de um tempo mau”, Plínio Marcos pariu e deu voz a uma formidável galeria de criaturas: ternas, líricas, truculentas, vadias, esperançosas, vitais em sua sobrevivência, seres mediatizados pelo real e pelo imaginário, lugar onde a ficção nasce, grande parte das vezes, como um grito de denúncia ou desejo de reconhecimento. (CONTRERAS, 2002, p. 10).

Além de essas personagens pertencerem ao submundo, são focalizadas a partir de uma realidade a qual revela as degradações humanas, tais como exclusão, atos violentos, condições de miséria ou consumo de drogas; portanto, há nas obras teatrais de Plínio Marcos uma forte crítica a questões sociais, seja ela dirigida ao contexto em que se encontram suas personagens, seja ao comportamento destas.

Ao se referir a tal dramaturgo, entretanto, não se pode esquecer de que foi considerado por muitos como um autor maldito, principalmente por apresentar em suas peças seres ficcionais marginalizados. Sua dramaturgia ainda causa estranhamento ou desconforto a muitos que a classificam, na maioria das vezes, como vulgar ou pornográfica, devido ao grande número de gírias e palavras de baixo calão nos textos.

O teatro agressivo, praticado, entre outros, também por Plínio Marcos, é uma das características e tendências da vanguarda que se inscreveu entre as décadas de cinquenta e setenta, tanto no Brasil quanto além e, […] violência e agressividade são dois traços distintos do teatro naquele longo período de vinte anos, em que parte dele vivemos sob o efeito da ditadura política. (VIEIRA, 1994, p. 40).

Nos anos em que produziu grande parte de sua dramaturgia, Plínio Marcos sentiu os reflexos do regime militar em toda a sua produção teatral: suas peças eram vetadas pela censura por serem consideradas indecentes e incitarem ao sexo e à violência, como justificavam os censores ao barrarem uma das produções do dramaturgo. Enquanto seu teatro amargava com as proibições da censura, Plínio arriscou-se em nova empreitada no ano 1968: tendo recebido convite de um dos diretores da TV Tupi, Cassiano Gabus Mendes, para participar como roteirista da telenovela Beto Rockfeller, alegou não saber escrever novelas, porém, aproveitando sua experiência como ator teatral, aceitou um dos papéis da trama, o mecânico Vitório, personagem que lhe rendeu um prêmio como ator revelação. Em seguida, atuou nas telenovelas João Juca Jr. e Bandeira 2, escrevendo também alguns roteiros para casos especiais; todavia, logo desistiu da carreira televisiva, pois sua paixão era, definitivamente, o teatro (MENDES, 2009).

À época, o cerco dos censores à obra de Plínio Marcos se fechava cada vez mais. Não somente suas peças foram impedidas de circular como também sua produção jornalística foi interrompida, sendo ele demitido dos vários jornais e revistas em que atuava. “Os censores [diziam]: ‘Plínio Marcos? Proibido’. A proibição tinha um objetivo mais cruel e restrito: impedi-lo de trabalhar”. (MENDES, 2009, p. 335). Começavam a piorar suas dificuldades financeiras, e a saída encontrada pelo autor santista foi a de vender suas peças, editadas em livros, pelas ruas e pela porta dos teatros. Eventualmente, recebia convites para fazer palestras em escolas ou outras instituições, mas naquele momento, era como camelô que Plínio garantia o sustento de sua família.

Na verdade, Plínio Marcos, a seu modo, expôs ao público, de forma nua e crua, uma realidade do Brasil que nem todos queriam enxergar. Por isso, é considerado um sucessor do dramaturgo Nelson Rodrigues² , conforme a crítica especializada e o próprio Nelson: a obra pliniana dialoga com a rodrigueana por questões de temática ou de semelhança de estilos. Para Contiero (2007), os dois dramaturgos têm uma visão pessimista da realidade humana, pois suas personagens sofrem demasiadamente graças às experiências de vida extremas e caóticas. Segundo Mendes (2009), Plínio inaugurou seu estilo dramatúrgico, concentrando a ação em poucas personagens, o que possibilitaria um enfoque maior no conflito e na eficiência do diálogo; suas peças se iniciam pelo conflito, determinando, assim, a ação e a autonomia do ser ficcional. Não é por acaso que Magaldi (2004), ao se referir ao teatro de Nelson Rodrigues, diz que, a partir da dramaturgia deste, proporcionou-se uma liberdade a todos os dramaturgos brasileiros e, portanto, todas as audácias seriam possíveis, como foi o caso da dramaturgia pliniana.

UM TEATRO MARGINAL

Depois de escrever suas primeiras peças teatrais, Barrela (1958) e Os fantoches (1960), obras que não renderam bilheteria nem fizeram muito sucesso na época, devido à censura que sofreram, Plínio Marcos dedicou-se a escrever Dois perdidos numa noite suja, baseado no conto O terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia. Nesse conto de Moravia (1985), o narrador e a personagem Lorusso são dois subempregados que pretendem realizar seus desejos: o primeiro almeja sapatos novos e o segundo, um pífaro; pois, assim, acreditam obter uma vida melhor. Decidem, portanto, assaltar os casais que frequentam o Villa Borghese, considerado um dos lugares mais ermos de Roma à noite, para conseguirem o que tanto desejam. Ao abordarem Gino e sua namorada em um dos jardins do parque, os dois se dizem policiais, mas logo a farsa é desfeita e o assalto é anunciado; no entanto, o lado sanguinário e a precipitação de Lorusso fazem com que este golpeie com o cabo de uma chave inglesa a cabeça de Gino, que cai desmaiado. Desesperados, os assaltantes fogem e, depois de dividirem os objetos furtados, voltam ao porão que alugavam para dormir. Ao verificar que os sapatos roubados de Gino não lhe cabem, o comparsa de Lorusso decide furtar os calçados deste, que, ao acordar, percebe a artimanha do companheiro. Eles travam uma violenta luta corporal, e, dessa forma, acordam os demais habitantes dali, os quais tentam apaziguar a briga. Por fim, os dois companheiros são encaminhados ao distrito policial, onde são reconhecidos como os golpistas do Villa Borghese, e acabam detidos pela acusação de roubo à mão armada e tentativa de homicídio.

A peça Dois perdidos seria, a princípio, um “teleteatro” para o programa TV de Vanguarda, da extinta TV Tupi, onde Plínio trabalhava como roteirista e ator. Intitulada de O terror, essa adaptação do texto de Moravia foi recusada pela direção do programa, que alegou morbidez da trama e crise na produção da TV de Vanguarda. Segundo Freire (2008), Plínio Marcos ficou muito impressionado com a trajetória dos dois meliantes do conto de Alberto Moravia e, mesmo depois da recusa de seu roteiro para a TV, o dramaturgo decidiu dar continuidade a seu projeto de escritura, transformando sua adaptação televisiva em uma peça de teatro.

O receio de ser censurado pela ditadura militar, no entanto, como ocorreu com suas obras anteriores, levou Plínio Marcos a alterar o título de sua peça de O terror para Dois perdidos numa noite suja, para que ela não fosse relacionada ao clima de terrorismo que se manifestava no Brasil, devido aos atentados e às guerrilhas entre grupos armados de esquerda e as organizações militares brasileiras (FREIRE, 2008).

Com o intuito de ganhar dinheiro para o sustento de sua família e por não encontrar algum grupo teatral interessado em encenar aquele texto, o próprio Plínio decidiu produzir Dois perdidos. Para isso, convidou o ator Ademir Rocha para contracenar com ele e seu amigo Benjamim Cattan para assinar a direção.

Dois perdidos numa noite suja, encenada pela primeira vez em um bar, no Centro de São Paulo, alcançou um inesperado sucesso de crítica. De acordo com VIEIRA (1994, p. 73), o crítico teatral “João Apolinário sustentou, entusiasticamente, que a peça é uma pequena obra-prima da dramaturgia brasileira […]”. O crítico (apud Vieira, 1994) ainda elogiou o dramaturgo pela construção das personagens Tonho e Paco, que beiram à margem da sociedade, e pela forma como se dá a tensa relação entre elas no decorrer da trama.

Outro especialista da área, Alberto D’Aversa, sobre a estreia de Dois perdidos numa noite suja, declarou que esta era “[…] sem dúvida a peça mais inquietante e viva destes últimos e anêmicos anos de teatro brasileiro”. (apud MENDES, 2009, p. 136); portanto, esse foi o texto teatral que projetou a carreira de Plínio Marcos como dramaturgo. Liberada pelos censores da época, a peça iniciou temporada em vários teatros, a começar pelo Teatro de Arena, em São Paulo, e, em seguida, Plínio autorizou a montagem de Dois perdidos no Rio de Janeiro, o que consolidou de vez sua dramaturgia.

No teatro, 1967 ficaria na história como o ano Plínio Marcos. “Foi ele, dentro de nosso teatro, um surto epidêmico. Alastrou-se por todos os palcos, elencos e plateias. Apanhava-se Plínio Marcos como, outrora, a febre amarela, a peste bubônica, a bexiga e a escarlatina”, constatou Nelson Rodrigues em artigo na revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Embora convivessem pouco, eles se conheceram e ficaram amigos logo depois da estreia de Dois perdidos no Rio. (MENDES, 2009, p. 157).

Assim como São Paulo, a capital carioca era – e ainda é – referência em relação às grandes produções teatrais. A partir das encenações de suas peças nas duas grandes capitais, os textos do autor santista passaram a ser requisitados por muitos grupos teatrais. Enfim, Plínio Marcos havia saía de vez do anonimato como dramaturgo, e suas personagens foram projetadas como indivíduos rancorosos e ressentidos daquele mundo que os isolava das possibilidades de uma vida social mais justa.

O enorme sucesso de seus textos e suas necessidades econômicas fizeram com que Plínio Marcos escrevesse bastante. Dentre suas renomadas peças teatrais, estava Navalha na carne, escrita em apenas três noites do ano de 1967 (MENDES, 2009). Composta por apenas um ato, essa peça de Plínio põe em evidência a prostituição, tema recorrente em toda sua produção teatral, cujo enredo trata da conflituosa relação entre o cafetão Vado, a prostituta Neusa Sueli e o homossexual Veludo (MARCOS, 2003).

A temática de Navalha despertou a atenção dos integrantes do grupo teatral União, os quais buscavam uma peça para encenar e, por intermédio do diretor Fauzi Arap, conheceram Plínio Marcos. Este apresentou o texto recém-escrito aos atores do União e convenceu-os a encenar Navalha na carne. Iniciados os primeiros ensaios da montagem, um decreto do Departamento da Polícia Federal censurava a peça em todo país, por considerá-la obscena, mórbida e, como descrevia a portaria de tal decreto, “[…] desprovida de mensagem construtiva, positiva e de sanções a impulsos ilegítimos, o que a torna inadequada à plateia de qualquer nível etário […]”. (MENDES, 2009, p. 160).

Organizou-se, então, uma grande campanha em defesa do texto de Plínio Marcos. Artistas e intelectuais mobilizaram-se e entraram na Justiça com recurso para solicitar a liberação da peça e exigir a presença das autoridades aos ensaios abertos, realizados no apartamento da atriz Cacilda Becker, a qual também aderiu à manifestação. De acordo com Contreras (2002), a comoção da classe teatral paulista a favor de Plínio teve efeito e marcou a carreira do dramaturgo. Finalmente, naquele mesmo ano, Navalha na carne foi liberada, porém com a classificação indicativa para maiores de 21 anos de idade.

A estreia de Navalha na carne nos palcos paulistas ocorreu no dia 11 de setembro de 1967 e obteve grande sucesso de público, apesar da linguagem pliniana, como já observado, ter causado (e ainda causa) o estranhamento dos espectadores presentes, como comprova a crítica de Sábato Magaldi ao jornal O Estado de São Paulo: “[…] grande ovação no final do espetáculo [e] aplausos em cena aberta, repetidas vezes, [como] uma descarga emocional para equilibrar o incômodo provocado por numerosos diálogos de violenta dramaticidade”. (apud MENDES, 2009, p. 169).

Tônia Carrero também se empenhou na campanha a favor da liberação de Navalha na carne. Interessada no papel da prostituta da peça, a atriz militou contra a censura a Plínio Marcos, por conseguinte, adquiriu os direitos do texto para encená-lo no Rio de Janeiro. Tônia, considerada uma artista glamorosa na época, enfrentou preconceitos por representar uma meretriz decadente, cujas falas eram repletas de palavras de baixo calão. Em entrevista concedida ao programa Jô Soares Onze e Meia, do Sistema Brasileiro de Televisão, em 1988, Plínio Marcos declarou:

A Navalha na carne que foi feita […] pela Tônia Carrero, essa mulher divina, que fazia […] contra tudo e contra todos. Porque com ela funcionou a censura contra ela e mais, o preconceito. Todo mundo falava assim: “Mulher bonita não pode fazer esse papel!” […] Ela foi lá, estraçalhou, deu um banho, arrebitou a boca do balão. Foi a primeira pessoa a arrebitar a boca do balão no Brasil. Foi ela com a Navalha na carne! (SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO, 1988, [s.p.]).

A personagem Neusa Sueli rendeu a Tônia Carrero uma reviravolta em seu trabalho como atriz de teatro, pois sua atuação, além de marcante, rompeu com o estigma de só interpretar mulheres belas e elegantes. Além disso, essa montagem de Navalha, cuja produção artística pertencia à própria Tônia, teve grande êxito. Na estreia, ao término da apresentação, como afirma MENDES (2009, p. 168): foi “[…] uma ovação. Ao contrário do que [se] previa, o público de Tônia se rendeu à sua interpretação, ao espetáculo e à peça”, resultado este que, a exemplo da encenação paulista, confirmou a grandiosidade de Navalha na carne.

Como dito anteriormente, durante sua carreira como dramaturgo, se por um lado, Plínio Marcos presenciou a movimentação favorável em torno de sua obra teatral e das diversas montagens de suas peças; por outro, testemunhou também a censura cada vez mais contundente a seus textos teatrais. Segundo Freire (2008), Plínio sofreu uma verdadeira interdição profissional, tornando-se um dos autores mais censurados pelo regime militar brasileiro. Tal reprimenda pode ser observada com a peça O abajur lilás, proibida oficialmente de ser encenada em todo o país durante uma década.

Em 1980, O abajur lilás foi finalmente liberada pelos censores; contudo, durante os anos em que a peça esteve interditada, Plínio Marcos se empenhou judicialmente para obter a liberação do texto, o qual estreou em 25 de junho daquele ano, no Teatro Municipal Castro Mendes de Campinas e, em seguida, cumpriu temporada no Teatro Aliança Francesa em São Paulo (MENDES, 2009). Novamente, uma peça de Plínio fazia sucesso: sob a direção de Fauzi Arap, a primeira encenação de O abajur recebeu críticas positivas na época, sendo comparada com peças anteriores do dramaturgo santista, como fez Sábato Magaldi ao declarar que, nessa peça, “[…] Plínio Marcos fundiu nela, mais do que em outras obras-primas, Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, talento e ira”. (MAGALDI apud MENDES, 2009, p. 286).

Assim sendo, considerado um marco da resistência contra a censura, esse texto de Plínio Marcos confirmava seu habilidoso trabalho dramatúrgico, sobretudo por abordar as tensas relações de repressão e, dessa forma, vista como uma descrição metafórica do poder ditatorial da época:

Na peça, cada uma das personagens femininas assumia uma posição diferente frente à truculência do dono do poder: Dilma era acomodada e se alienava dos problemas das outras por receio de represálias, Leninha era individualista e queria negociar, chegando à delação, e Célia era a “porra-louca” que não media consequências. Um abajur quebrado era o gancho para Giro e Osvaldo submeterem as mulheres a uma cruel sessão de tortura em busca do nome da culpada. (FREIRE, 2008, p. 175-176).

Nessa citação, Freire (2008) faz uma referência ao posicionamento que cada uma das personagens poderia adquirir diante àquele contexto histórico brasileiro: as mulheres seriam a representação das vítimas de tortura e dos subversivos; os homens, a dos ditadores e dos torturadores. Para reafirmar esse pensamento, Mendes (2009) justifica a possível causa da proibição desse texto teatral de Plínio: provavelmente, os censores associaram o autoritarismo das personagens opressoras da peça à brutalidade do governo militar.

É possível considerar o diálogo entre a trama de O abajur lilás e o momento político brasileiro, da época, por meio da analogia com a ressignificação que as artes proporcionam ao contexto nas quais se inserem. De acordo com Schollhammer (2009), muitas das manifestações artísticas surgidas nos anos da ditadura brasileira possuíam como um de seus principais interesses retratarem a violência, em uma atitude combativa à opressão e com fins políticos. Confirma-se a afirmação do estudioso (2009) com o seguinte depoimento da ex-esposa de Plínio Marcos, a atriz WALDEREZ DE BARROS :

Durante a universidade, me envolvi com política estudantil – fiz parte do CPC, o Centro Popular de Cultura da Filosofia. A gente organizava apresentações de teatro e música em sindicatos, fábricas, escolas… Enfim, a ideia era usar a arte como um veículo para fazer política. (apud STANDKE, 2013, p. 9).

Segundo a constatação da artista (apud STANDKE, 2013), sua experiência com política e teatro, ainda como estudante de Filosofia no início dos anos 1960, fez com que tivesse contato com uma arte formadora de opinião, expondo, engajadamente às camadas mais populares da sociedade, seus direitos civis e a revolta aos regimes antidemocráticos.

No tocante à obra pliniana, pode-se dizer que o engajamento político aparece no sentido de que nela existe “[uma] correlação entre temáticas como loucura e poder, feminismo e repressão, homossexualismo e violência, que [se] ousa colocar-se como política […]” (FAGUNDES PRODUÇÕES ARTÍSTICAS, 1980, p. 7), uma vez que as peças de Plínio evidenciam, nas correlações citadas, a cisão social entre opressores e oprimidos, como se pode observar em sua peça A mancha roxa, escrita depois do término do regime militarista, na seguinte fala de Professora: “[…] Eu, aqui dentro, estou sob tutela do Estado. O Estado é responsável por mim. […] Tem que me limpar e me devolver limpa pro convívio social. É isso. É obrigação do Estado”. (MARCOS, 2002, p. 21). Nessa passagem da peça, como uma espécie de crítica ao sistema penitenciário brasileiro, a personagem Professora (apelido este devido à profissão que exercia antes de ser detida e que a caracteriza como a mais esclarecida dentre aquelas presas) exige providências das autoridades, as quais nada fazem pelas detentas; evidencia, com isso, a opressão e a negligência às minorias. A Professora apresenta suas ideias às demais presidiárias, defendendo-as pelos direitos de cidadãs. Ao fazê-lo, age de forma política, haja vista que, segundo DALCASTAGNÉ (2008, p. 80), “[falar] por alguém é sempre um ato político, às vezes legítimo, frequentemente autoritário […]”. Assim, ao impor um discurso em favor dos interesses daquele grupo, a personagem mobiliza este contra as classes dominantes, de modo a querer se vingar de toda sociedade: “[…] Eles nos socaram aqui dentro. Por crimes que nos forçaram a praticar. Agora é a volta. […] Ficaram surdos, omissos ao nosso problema. Vão aprender pela desgraça”. (MARCOS, 2002, p. 23). Nessa fala, carregada de ódio e inconformismo, verfica-se a extrema oposição entre oprimidos e opressores, sendo estes representados principalmente pelos governantes, em uma alusão ao desacordo ideológico entre grupos políticos de esquerda e de direita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se, portanto, que, por meio de suas personagens e das relações estabelecidas com outros indivíduos, a dramaturgia de Plínio Marcos evidencia o convívio do homem frente ao caos social, em que são destacados problemas como violência, meretrício, desemprego, preconceitos, consumo de drogas. Ao abordar a imagem do ser humano, seus desejos e seus medos, a obra pliniana convida seu leitor/espectador a intervir de alguma maneira sobre a realidade massacrante dos menos favorecidos.

Assim sendo, ao denunciar as mazelas que assolam a sociedade contemporânea, a obra de Plínio se mantém atual; prova disso, são as últimas adaptações cinematográficas dos textos de Plínio e, até mesmo, as novas abordagens acerca da obra pliniana, como o evento Plínio Marcos – 80 anos de escrita maloqueira, ocorrida em abril deste ano em São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade, em que a própria denominação da mostra substitui escrita marginal por escrita maloqueira. Tais exemplos demonstram, portanto, o surgimento de novos olhares sobre o teatro e a literatura de Plínio Marcos nos dias de hoje.

A contemporaneidade de seus textos teatrais foi atestada pelo próprio Plínio em entrevista concedida ao programa de TV Jô Soares onze e meia, exibido em 1988, quando, de modo irreverente e crítico, ele se referiu à remontagem de Navalha na carne naquele ano: “[…] a peça ainda tem validade. Não por méritos da peça, é por culpa do país que não evolui nunca. Então, a peça fica valendo e, se continuar essa situação que tá aí, a peça vira um clássico”. (SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO, 1988, [s.p.]); entretanto, a atualidade na produção teatral pliniana atinge outros patamares, uma vez que não expõe apenas as problemáticas de uma realidade propriamente brasileira, mas sim universal: por isso, muitas peças teatrais do dramaturgo foram traduzidas e encenadas em outros países, como as recentes montagens de O abajur lilás, em 2012, pela companhia teatral A Escola da Noite, de Portugal, e de Dois perdidos numa noite suja, encenada pelo Teatro Brasileiro de Munique (Alemanha), em 2014.

Note-se, ainda, que nos últimos anos, a importância de Plínio Marcos no cenário cultural brasileiro pôde ser constatada nas inúmeras homenagens prestadas a ele, antes mesmo de sua morte, como a obtenção do título de Cidadão Emérito de sua cidade natal, Santos, em 1998. Homenagens estas mais do que justas, haja vista que a vida profissional de Plínio pode se relacionar à condição de suas personagens, devido à marginalização que sofreu, sobretudo a sua produção literária, pois, desde o período militar brasileiro, a incerteza em obter trabalhos ligados ao teatro e à literatura acarretou dificuldades em sua vida pessoal: conforme Mendes (2009), a partir da década de 80, para complementar suas finanças, Plínio Marcos passou a ministrar cursos sobre esoterismo e a exercer a função de tarólogo em seu próprio domicílio. Nesse mesmo tempo, passou a viver maritalmente com a jornalista Vera Artaxo, quem muito o auxiliou pessoal e profissionalmente, até que, no dia 19 de novembro de 1999, o dramaturgo faleceu, vítima de derrame cerebral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. 6. ed. São Paulo: Global, 2004.

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RODRIGUES, Sergio Manoel. Carnavalização e paródia em Álbum de família, de Nelson Rodrigues. 2008. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

STANDKE, Stevens. A voz da experiência (entrevista com a atriz Walderez de Barros). AT revista, Santos, ed. 468, p. 6-11, nov. 2013.

VIEIRA, Paulo. Plínio Marcos: a flor e o mal. Rio de Janeiro: Firmo, 1994.

DOCUMENTOS ELETRÔNICOS

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. O desafio da violência para a literatura brasileira contemporânea. Latin American students association. Rio de Janeiro, 2009, p. 1-27. Disponível em:

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Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=QElq9Mk7tP4&feature=related>. Acesso em 03 jan. 2012.

______. Entrevista de Plínio Marcos no programa Jô Soares onze e meia.(parte 2), São Paulo, 1988. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=-7DmFJqm-LA&feature=related>. Acesso em: 03 jan. 2012.

Notas de Rodapé

[1].Peças que serão comentadas no decorrer deste artigo; consideradas por mim como obras teatrais que representam e exemplificam contundentemente as características do teatro de Plínio Marcos.

[2] O teatro de Nelson Rodrigues foi responsável pela modernidade nas artes cênicas nacionais e questionava os costumes e o tradicionalismo da sociedade burguesa da época (entre as décadas de 1930 e 1940), abordando temas considerados tabus, tais como adultério, incesto e prostituição. (RODRIGUES, 2008).

[3] Em seu relacionamento com Plínio Marcos, com quem foi casada durante vinte e um anos, Walderez de Barros deu vida a muitas personagens criadas por seu ex-marido (STANDKE, 2013), inclusive, atuou na primeira encenação de O abajur lilás, na qual interpretou a prostituta Dilma.

[4] Citam-se como exemplos as mais recentes adaptações cinematográficas de Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, produzidas, respectivamente, nos anos 1997 e 2002. A primeira dirigida por Neville D’Almeida e o elenco protagonizado por Vera Fischer, Jorge Perugorria e Carlos Loffer; a segunda com direção de José Joffily e os atores Roberto Bomtempo e Débora Falabella nos papéis principais. (FREIRE, 2008).