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JOSÉ DE ALENCAR E A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

JOSÉ DE ALENCAR E A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

JOSÉ DE ALENCAR AND BRAZILIAN LINGUISTIC IDENTITY

MÁRCIA MENDES PIMENTA

Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-SP
UNIBR – Faculdade de São Vicente
marciampimenta@hotmail.com

RESUMO

Colônia portuguesa durante três séculos, o Brasil adentrou o século XIX ávido por libertar-se não apenas politicamente da antiga Metrópole, mas de tudo o que lhe lembrasse o jugo por ela imposto. Os ideais nacionalistas encontraram aqui ambiente propício: recém-constituída, a nação brasileira orientava-se no sentido da afirmação de uma identidade cultural nacional. A língua, herança do colonizador, já apresentava elementos que a diferenciavam do padrão lusitano, configurando um uso típico por parte da comunidade brasileira no nível da oralidade, porém ausente na língua escrita, ainda presa às normas portuguesas. Este trabalho adota um enfoque histórico-linguístico, por meio do qual é possível verificar os fenômenos de mudança linguística, de inovação e adoção de um uso específico pela coletividade. O caráter histórico e social da língua possibilita-lhe expressar as marcas que caracterizam o homem e seu tempo. No caso de José de Alencar e “O Tronco do Ipê”, essas marcas refletem a identidade linguística e cultural brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Nacionalismo linguístico. Mudança linguística. Identidade linguística brasileira.

 

ABSTRACT

Portuguese colony for three centuries, Brazil entered the nineteenth century eager to liberate not only politically the old metropolis, but everything that reminded the yoke imposed by it. The nationalist ideals found here favorable environment: newly constituted, the Brazilian nation was oriented towards the affirmation of a national cultural identity. The language, colonizer heritage, had already elements that differentiated it Lusitanian standard, configuring a typical use by the Brazilian community in terms of orality, but absent in the written language, still attached to the Portuguese standards. This research adopts a historical-linguistic approach, through which it’s possible to check the language change phenomena, innovation and adoption of a specific use by the community. The historical and social character of language enables it to express the marks that characterize the man and his time. In the case of José de Alencar and “O Tronco do Ipê”, these marks reflect Brazilian linguistic and cultural identity.

KEYWORDS: Linguistic nationalism. Language change. Brazilian linguistic identity.

 

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre a língua em uso no Brasil salientam sua importância como manifestação espontânea e genuína da cultura brasileira. Orientam-se no sentido de destacar uma identidade linguística que corresponda a uma identidade cultural própria, nacional. Procuram realçar a historicidade da realidade linguística do Brasil, especialmente no que se refere aos falares do povo e à relação entre a oralidade e a escrita.

Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior. Inicialmente, a concepção da identidade brasileira foi no sentido de oposição ao colonizador, desviando-se da imitação para a originalidade. Há, porém, uma dimensão interna no processo de identificação: dizer que algo é diferente não basta; é necessário mostrar em que se identifica.

O movimento romântico tentou construir um modelo de ser nacional, embora não tenha discutido o problema de forma mais abrangente. Ocupou-se da fusão do índio (idealizado) com o branco, mas deixou de lado o negro, até então destituído de qualquer cidadania; a ideologia de um Brasil mestiço só começou a forjar-se no final do século XIX. De qualquer forma, procurou uma expressão linguística que refletisse a realidade social de sua época e que correspondesse a uma busca da identidade.

Foi a partir desse século, que a posição do escritor e a receptividade do público foram decisivamente influenciadas pelo fato de a literatura brasileira ser encarada como veículo para exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasilidade. O artista começou a tomar consciência de si mesmo como cidadão, em conexão estreita com o nacionalismo vigente na sociedade brasileira da época.

A língua só significa na história, vista não só como cronologia ou evolução, mas como fatos que reclamam sentidos. Não é tão somente um instrumento; é também um trabalho humano e, por conseguinte, um trabalho histórico-social. A historicidade do homem coincide com a historicidade da língua, no sentido do diálogo, do falar com outro, como também no de falar como outros, historicamente determinado. Aí reside a dinamicidade da língua, que está em perpétuo movimento e transformação, para se adaptar às necessidades expressivas dos usuários e continuar funcionando como tal.

O problema da mudança linguística é sempre um problema histórico, pois depende do conhecimento das condições da língua estudada e do momento particular em que ela é considerada. Sob esse enfoque histórico, pode-se verificar os fenômenos de mudança da língua e caracterizá-los no tempo e no espaço dentro de uma determinada época, o que permite relacionar os acontecimentos e as circunstâncias que condicionam o homem e a sociedade.

Considerando-se que a língua e os instrumentos linguísticos são objetos históricos intimamente ligados à formação do país, da nação, do Estado, não se pode desconhecer que a noção de nação, no Brasil, a partir do final do século XVIII, tem como ponto essencial de sua identidade a questão da língua nacional. Conforme as palavras de Guimarães & Orlandi (1996):

Nesta história, é crucial a questão da língua nacional, ou seja, a língua  que  funciona no Brasil  e que,  por  suas especificidades, faz parte do processo de constituição da nacionalidade. (GUIMARÃES &ORLANDI, 1996, p.9)

Sabe-se que a língua em uso no Brasil é, essencialmente, a Língua Portuguesa. Não mais se sustentam hoje as posições que consideravam a língua do Brasil ora um dialeto do Português, ora uma língua autônoma, derivada do Português. Segundo Coseriu (1979 a), a um sistema linguístico podem corresponder várias normas, decorrentes de usos coletivos específicos que privilegiam certos empregos.

Assim, ao lado do sistema funcional, há que distinguir a realização normal – da norma – que também caracteriza as línguas. Sistema e norma não são realidades autônomas e opostas ao falar, nem mesmo aspectos do falar, mas formas que se comprovam no próprio falar, elaboradas sobre a base da atividade linguística concreta. A norma é a realização coletiva do sistema; o falar (uso) é a realização individual-concreta da norma.

O Português do Brasil corresponde a um uso típico, por parte de toda a comunidade brasileira, por meio de uma diferenciação gradativa, já consistente no século passado e hoje indiscutível, a partir do nível da oralidade e atualmente também presente na língua escrita. A língua usada no Brasil, na sua modalidade escrita, caracteriza a vigência do modelo português, até praticamente meados do século XIX; a partir daí, documenta as tentativas ocasionais de cunhar padrões próprios, que acabariam por fixar-se. Nos textos dos escritores dessa época e na ausência de documentação direta, evidencia-se a diferenciação progressiva da variante linguística brasileira em relação à portuguesa. Todo esse material contribuiu para atestar a constituição do uso brasileiro, já emergente na língua escrita. Isto só ocorreria quando, por volta da metade do século, os românticos começaram a entrever a existência da variante brasileira e a empreender a defesa de seu suposto direito a uma expressão literária própria.

A questão da língua preocupou particularmente os escritores e os filósofos do século XIX. Só depois da Independência surgiu uma geração sem preconceitos, que compreendia já não ser necessária ou obrigatória a dependência dos padrões da ex-metrópole e entendia ser possível constituir-se uma cultura própria, resultante de ambiente próprio.

Alguns escritores da época, além de reivindicarem certo grau de liberdade em face das prescrições gramaticais e dos modelos linguístico-literários portugueses, também prezavam a espontaneidade da expressão e deixavam entrever traços de oralidade em seus textos. Destaca-se nessa posição José de Alencar que, além de documentar em seus escritos alguns aspectos do uso linguístico brasileiro, também polemizou a esse respeito, permitindo, assim, que se conhecesse o pensamento crítico de seu tempo.

Por sua relevância como escritor, José de Alencar tem sido tomado como símbolo do pensamento romântico sobre a língua em uso no Brasil. Quando da publicação de “Iracema”, em 1865, foi alvo de críticas do escritor português Pinheiro Chagas e de outros críticos dos dois países, que o acusaram de escrever numa língua incorreta, tendo com ele mantido conhecidas e públicas polêmicas.

Na realidade, a tese de Alencar envolvia o direito a uma maior liberdade de estilo e de expressão. Um dos pilares do pensamento alencariano, que o eleva entre seus contemporâneos, independentemente de suas qualidades de romancista, é a profunda consciência da missão específica do artista, de mediador entre a língua falada e a literária.

É nessa problemática que se situa o presente trabalho: direciona-se no sentido do estudo do nacionalismo linguístico emergente no século XIX, da questão da língua como elemento decisivo para a definição da brasilidade, da luta de Alencar pelo direito à expressão linguística brasileira. Serão destacados do romance “O Tronco do Ipê” alguns exemplos das marcas linguísticas que evidenciam o uso brasileiro da língua portuguesa, configurando a busca da identidade linguística e cultural, dentro do processo de constituição da nacionalidade.

 

O ROMANTISMO E O NACIONALISMO LINGUÍSTICO

 Quando foi declarada a independência política do Brasil, em 1822, a Europa estava em pleno Romantismo. As ideias novas, vitoriosas desde a Revolução Francesa, haviam criado no plano estético um amplo movimento de repúdio à rigidez dos padrões clássicos e de incentivo à liberdade, como reflexo da ideologia liberal. Era um espírito renovador que se impunha.

Os artistas, em sua ânsia de atingir um ideal, entravam em conflito com o utilitarismo burguês. Assim, buscavam inspiração em temas da Idade Média, que viam como um tempo heroico, ou refugiavam-se na torre de marfim do isolamento, nas atitudes escapistas, enfim. A esse conflito, chamavam mal du siècle.

As manifestações românticas de evasão eram menos do rigor das regras clássicas do que da falsa liberdade baseada na propriedade burguesa e na divisão do trabalho capitalista; menos dos sonhos de juventude que de uma sociedade conservadora e tradicional, que barrava o caminho a ambições novas. A geração romântica é a das ilusões perdidas, do desencanto. Seu culto do eu nasceu mais de uma tomada de consciência crítica do que de um egocentrismo complacente.

A oposição existente entre o mundo imaginado e o mundo real gerou o caráter contraditório do Romantismo: simplicidade popular e refinamento individualista, tendências conservadoras e germes revolucionários, brando lirismo e ironia amarga, devoção e orgulho. Essa dicotomia também explica duas posturas do artista romântico frente à realidade: a fuga a ela ou a tentativa de atuar ativamente em sua modificação. A primeira levou-o a se aproximar da natureza e a se tornar adepto do bon sauvage de Rousseau, o homem puro antes de ser contaminado pela sociedade; a segunda levou-o a participar dos movimentos de libertação, numerosos na época. Alguns lutaram pela formação do Estado nacional; outros, como Gonçalves Dias e José de Alencar no Brasil, reivindicaram a originalidade do nacionalismo linguístico.

De acordo com Costa (1956), o Brasil não deixou de ser uma colônia sem lutas. Só que essas lutas não significaram um avanço no que diz respeito à libertação dos padrões culturais europeus. A instalação dos primeiros cursos jurídicos em nível superior e o aparecimento da imprensa periódica, ausentes no período colonial, foram os fatos mais importantes para o desenvolvimento de uma consciência intelectual. Mesmo assim, essa consciência não correspondia a um real desenvolvimento da sociedade.

Silva Neto (1976) afirma que, até meados do século XIX, nossos escritores e colaboradores de jornais procuravam imitar na língua escrita os modelos portugueses. Havia como que uma vergonha do registro do uso brasileiro, uma tendência para considerar “erros” as suas particularidades ou suas divergências do uso lusitano.

Apesar de uma mudança na vida material e intelectual do Brasil a partir de 1850, havia um clima de imitação dos modelos europeus, nos costumes como nas artes, conforme as informações dadas por F. Alencar (1985):

A vida artística restringia-se à Corte do Rio de Janeiro, onde  os  espetáculos   teatrais  eram  apresentados (geralmente peças estrangeiras em francês) e pouco sobrava para os autores nacionais. Nos salões da aristocracia fluminense, dançava-se a modinha, a última canção francesa ou italiana da moda. E isso correspondia aos hábitos da vida urbana que essa classe em ascensão, à sombra do Império, cultiva. Uma estética de imitação. Ainda faltava muito para a independência cultural do Brasil. (F. ALENCAR, 1985, p.133):

Deve-se salientar que, com a vulgarização do ensino e com o desenvolvimento da imprensa, classes sociais menos dotadas culturalmente tiveram oportunidades novas e acesso à literatura, contribuindo inclusive para esta última. Para isso, foram importantes as novas condições criadas pela independência política, bem como o Romantismo, com a valorização da estética do nacional e do popular. Os escritores começaram a adquirir consciência de si mesmos como cidadãos; eram já de uma geração que havia feito seus estudos superiores no Brasil, afastados da influência cultural de Coimbra e de Lisboa. O ideal nacionalista e democrático do movimento não poderia deixar de refletir-se na forma de expressá-lo: a língua.

Depois da independência política, tentava-se conseguir a independência cultural, ou ao menos, maior liberdade de expressão linguística. No processo de consolidação de uma nacionalidade, de acordo com Rémond (1974), é comum que se fixe um elemento unificador que torne visível a nação. Tanto a língua, como a raça e a religião podem servir a essa tarefa. Procurava-se na época a adequação entre a língua e um modo de ser da língua que proporcionasse a visibilidade do caráter do brasileiro e que definisse a identidade do país frente a Portugal. Como a língua do Brasil era a mesma do ex-colonizador, tentou-se buscar nas especificidades do uso brasileiro o traço distintivo marcante da identidade cultural da brasilidade.

Várias manifestações sobre a natureza da língua em uso no Brasil começaram a surgir desde o fim do primeiro quartel do século XIX. O mais antigo texto conhecido que apresenta a diferenciação da língua no Brasil remonta a 1824-1825: deve-se ao Visconde de Pedra Branca, Domingos Borges de Barros, e faz parte da Introdução ao “Atlas Etnográfico do Globo”, de Adrien Balbi. Foi escrito em francês, com o subtítulo “Brasileirismos” e, sem conotação nacionalista ou ideológica, relaciona uma lista de palavras que mudaram de sentido no Brasil, assim como de algumas desconhecidas em Portugal, empréstimos indígenas e africanos.

O texto do Visconde de Pedra Branca deu início à questão da língua brasileira, tema este que não mais deixou de ser tratado na cultura brasileira, estendendo-se por todo o século XIX até o XX e envolvendo inúmeros literatos e críticos. Em 1860, MACEDO SOARES (apud PIMENTEL PINTO, 1978: XXII), censurando a ausência do léxico brasileiro na língua jornalística e propondo o aproveitamento desse léxico na língua literária, proclama: “Já é tempo de os brasileiros escreverem como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal”.

A reivindicação da liberdade de expressão, relativa à de Portugal, começava apenas a delinear-se como implicação nacionalista. Com efeito, o debate em torno da língua traz a discussão sobre a significativa e constante questão da identidade nacional na história da cultura brasileira.

Em 1857, Brás da Costa Rubim publicara o “Vocabulário Brasileiro para servir de complemento aos dicionários de língua portuguesa”. Em 1870, dá-se a célebre polêmica entre José de Alencar e o português Pinheiro Chagas; este último fizera críticas à linguagem de Alencar em “Iracema”, referente ao uso de neologismos e de algumas construções gramaticais: emprego do artigo, omissão do reflexivo em alguns verbos, colocação de pronomes pessoais. Alencar respondeu-lhe num pós-escrito na segunda edição de “Iracema”.

José de Alencar polemizou também com outros críticos a respeito do uso da língua em seus escritos: Antônio Henriques Leal, Franklin Távora, José Feliciano de Castilho e Joaquim Nabuco. As referidas polêmicas tinham como ponto essencial o uso brasileiro da língua portuguesa e o direito do escritor à liberdade de estilo, a não submissão aos modelos portugueses.

Em 1881, aparece a “Gramática Portuguesa” de Júlio Ribeiro, a primeira a ser publicada no Brasil. Apesar de seguir ainda as normas lusitanas, propõe-se ser uma exposição dos usos da língua, inclusive os brasileiros; distancia-se da influência direta de Portugal e inicia a gramatização brasileira.

Desde essa época, intensifica-se a tendência de documentar a realidade linguística brasileira a partir da observação de fatos fonológicos, léxicos e sintáticos, de Macedo Soares a críticos e gramáticos como Sílvio Romero, José Veríssimo, João Ribeiro e outros. É bem verdade que o final do século XIX e início do XX são dominados pelo purismo em matéria linguística, o qual preconizava a fidelidade aos modelos dos grandes escritores portugueses do passado e a rigidez na observância das normas gramaticais lusitanas.

A mentalidade criada sobre uma suposta superioridade da civilização europeia parece ter raízes no complexo do colonizado, na ideia de atraso cultural em relação ao colonizador. De acordo com Cunha (1968), à proporção que o colonizado é educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imitar a este. O colonizador é sujeito, ao passo que o colonizado é objeto. Dentro dessa perspectiva, o colonialismo impõe aos países colonizados uma dupla dominação: ela é exploração econômica das matérias-primas e importação de produtos acabados, mas sobretudo dominação cultural. No dizer de Cunha (1998),

A ideia de que só a Europa possuía as matrizes da cultura era tão aceita que, quando o instinto de nacionalidade passou a revelar-se na pena de José de Alencar, o fato se revestiu das características de escândalo literário e o grande romancista se viu impiedosamente criticado pelos próprios compatriotas. (CUNHA ,1998, p. 14)

As primeiras críticas a Alencar, entretanto, não eram pela sua temática, pois o Indianismo foi bem acolhido; o mito do bom selvagem era providencial, capaz de trazer ao brasileiro, ainda vinculado ao gosto europeu, o que lhe faltava: a nobreza de origem, as raízes, a tradição. Criou-se, na literatura de ficção e na poesia, um mito a que se deu o nome de Indianismo, que era uma idealização das qualidades e da pureza dos primeiros habitantes do Brasil.

O que não era admitido por alguns dos contemporâneos de Alencar era a tentativa de independência linguística, a aceitação de um uso diferente do Português europeu, o reconhecimento de um estilo próprio e original.

Desse modo, o Romantismo, tendo por base o nacionalismo, levou alguns escritores não apenas a exaltar a sua terra, mas a considerar suas obras como contribuição à tarefa de construir uma literatura nacional, trabalhando a língua em uso no Brasil e adequando-a a uma realidade própria, brasileira, como parte do processo de constituição da nacionalidade. No entanto, a apropriação da linguagem brasileira pela literatura só se completou realmente no século XX, com os escritores modernistas.

A noção de nação, desde o final do século XVIII e principalmente após a Independência, tem, portanto, como ponto fundamental de sua identidade a questão da língua nacional, ligada à da identidade cultural.

 

LÍNGUA E HISTÓRIA

Como todos os produtos da cultura humana, a língua não poderia deixar de ser “um objeto de contemplação histórica”, conforme as palavras de PAUL (1983, p.13), isto é, ela deve ser estudada por uma ciência que aborde os fatores regulares e determinantes da sua mudança. Como a noção de mudança é estranha às ciências exatas, a história da língua se enquadra nas ciências culturais históricas.

 A mudança linguística

Paul (1983, p.18) observa ainda que “a ciência cultural é sempre uma ciência social. Só a sociedade possibilita a cultura, só a sociedade torna o homem um ser histórico”. Cada criação linguística é transmitida e transformada por indivíduos, e sempre que esse processo se repete, dá-se a ação sucessiva de diferentes indivíduos, sem a qual não se pode imaginar qualquer cultura.

Não é possível refletir seriamente sobre uma língua sem se pesquisar quais foram as mudanças ao longo da história. Ao se explicar uma mudança linguística, verifica-se que ela é consequência de um processo histórico. Apesar de fatores externos de instabilidade e fatores internos de resistência, deve-se entender a mudança não como simples modificação, mas como contínua reconstrução do sistema. Segundo Coseriu (1979 b, p.237), “a língua se faz mediante a mudança e morre como tal quando deixa de mudar”.

A pretensa contradição do sincrônico – funcionamento da língua – e do diacrônico – mudança linguística – pode ser resolvida se a língua for entendida como energeia, no sentido de Humboldt (apud COSERIU, 1982, p.22): “Ela própria [a língua] não é produto – ergon – mas uma atividade – energeia”. Desse modo, uma língua não é uma coisa feita, acabada, mas um conjunto de modos de fazer, um sistema de produção realizado historicamente.

Depois da publicação, em 1916, do “Curso de Linguística Geral” de Ferdinand de Saussure, passou a ser corrente a distinção entre sincronia e diacronia. Na dimensão estática, chamada sincrônica, o centro das atenções são as características da língua vista como um sistema estável num espaço de tempo; na dimensão histórica, chamada diacrônica, são as mudanças por que passa uma língua no tempo. Embora não negasse uma certa interdependência entre sincronia e diacronia, Saussure privilegiou os estudos sincrônicos, que para ele seriam os estudos da língua por excelência.

Coseriu (1979 b, p.229) posicionou-se contra a visão estática de sistema formulada por Saussure e propôs que se visse a língua como um sistema em movimento, em permanente sistematização; assumiu o ponto de vista de que as línguas são objetos históricos e que por isso seu estudo deve envolver descrição e história de forma integrada: “a língua funciona sincronicamente e é constituída diacronicamente”.

A mudança depende da sucessão e da combinação da iniciativa individual com a aceitação coletiva. Tudo aquilo que se afasta dos modelos existentes na língua do falante pode chamar-se inovação; a aceitação de uma inovação por parte do ouvinte é uma adoção. Essa inovação pode ser: alteração de um modelo tradicional; seleção entre variantes existentes; criação sistemática; empréstimo de outra língua; economia funcional, entre outros. Entretanto, inovação não é mudança.

Enquanto a inovação é um ato de fala, pois pertence à utilização da língua, a adoção é um fato de língua, transformação de uma experiência em saber, um ato mental de aquisição, modificação ou substituição de um modelo linguístico. “Toda mudança é, originalmente, uma adoção” (COSERIU, op. cit.: p.72). A mudança pertence à essência da língua; por isso, estudá-la não significa estudar alterações ou desvios, mas a consolidação de tradições linguísticas.

As modificações na estrutura da sociedade não se refletem como tais na estrutura interna da língua, pois não se trata de estruturas paralelas. A estrutura da sociedade corresponde à estrutura externa da língua, à sua estratificação social. Segundo Coseriu (1979), ela determina a rapidez ou a lentidão das mudanças, mas o social é um fator indireto na mudança linguística, na medida em que implica variedade e hierarquização do saber linguístico.

Norma e uso linguístico

Coseriu (1979 a) substituiu a dicotomia saussuriana langue e parole pela divisão sistema, norma, fala. O sistema é a língua abstrata, um conjunto de oposições funcionais, realizável em formas socialmente determinadas e mais ou menos constantes, que constituem a norma. Esta é a realização coletiva do sistema. Os dois conceitos recobrem a noção saussuriana de langue. A fala é a realização individual, concreta da norma, implicando a originalidade expressiva dos falantes; corresponde à parole saussuriana. No dizer de Coseriu (1979):

O sistema abrange as formas ideais de realização de uma  língua;  a  norma,  os  modelos  já  realizados historicamente. O sistema representa a dinamicidade da língua, o seu modo de fazer; a norma corresponde à fixação da língua em moldes tradicionais, representando o equilíbrio sincrônico do sistema. (COSERIU, 1979, b, págs. 50-51)

O sistema contém as oposições funcionais, isto é, os traços distintivos necessários para que uma unidade da língua não se confunda com outra. A norma contém tudo o que é tradicional, comum e constante. O sistema e a norma de uma língua funcional refletem a sua estrutura.

O sistema admite uma infinidade de realizações sem que, com isso, se alterem as condições funcionais da língua. A norma se impõe ao indivíduo, limitando sua liberdade expressiva, restringindo as possibilidades oferecidas pelo sistema. A norma de uma língua representa seu equilíbrio externo, isto é, social, entre as várias realizações possíveis e, simultaneamente, o seu equilíbrio interno. O sistema indica as possibilidades, os caminhos abertos e os fechados de um falar numa comunidade; a norma, as realizações obrigatórias e consagradas: não corresponde ao que se pode dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se diz numa comunidade.

O falante domina o sistema de uma língua quando está em condições de criar nela. O distanciamento entre sistema e norma de realização se manifesta quando a “criação” à luz do sistema inexiste na norma, na tradição já realizada e, por isso, não se encontra registrada nos dicionários e nas gramáticas.

Jespersen (1947, p.12) ressalta a importância da coletividade na aceitação da norma e, consequentemente, no estabelecimento do que é considerado correto em matéria linguística: “Y es esta comunidad lo que determina qué es lo correcto linguisticamente en lo que se dicen”.

Os falantes tendem, muitas vezes, a desenvolver uma atitude negativa em relação às mudanças, entendendo-as como uma degeneração ou decadência. Ora, estas ocorrem por meio de “erros” ou transgressões da norma, isto é, contra o uso que até aquele momento havia sido considerado correto. No dizer de Jespersen (1947),

A esta luz podemos comprender la aparente paradoja e que la evolución linguística se produce a través de una serie de constantes “errores” o pecados contra lo que hasta el momento há sido considerado uso correcto. (JESPERSEN 1947, p.177),

Dessa forma, o individual e o social interpenetram-se. As palavras, pronunciadas por uma só pessoa, não sobreviveriam. Todo indivíduo aprende e modifica a sua língua em contato com uma série de outros indivíduos. A aprendizagem da língua está condicionada ao meio social a que o indivíduo pertence; essa é a linguagem transmitida, depois da qual vem a linguagem adquirida, que a criança vai aprender na escola, onde entra em contato com o material linguístico que as gerações mais antigas legaram em suas obras.

Embora não exista correspondência nem de natureza nem de estrutura entre os elementos constitutivos da língua e os da sociedade, afirma Benveniste (1989, p. 97-98) que “a língua é o interpretante da sociedade” e que “a língua contém a sociedade”.

O que atribui à língua a posição de interpretante é o fato de ser ela o instrumento de comunicação comum a todos os membros da sociedade. A sociedade humana está apta a se diferenciar ou a evoluir constantemente, mas a língua permanece capaz de registrar e designar as mudanças sociais, as novidades e técnicas produzidas, pois nenhuma destas mudanças age diretamente sobre sua própria estrutura. O sistema linguístico muda muito lentamente, não sendo as mudanças percebidas sincronicamente.

Dentro desse prisma, cada grupo social, em determinada época, possui formas de expressar sua visão de mundo e sua realidade. Em meio à extrema diversificação social, a língua exerce um poder de coesão que transforma em comunidade um conjunto de indivíduos; ela é uma identidade que une diversidades individuais. A comunidade seria, assim, possuidora não só de uma língua, mas de um repertório, uma série de recursos comunicativos, cada um deles com uma adequação e uma significação própria. A língua diz algo sobre a visão de mundo e os valores culturais da sociedade da qual ela faz parte.

Nas lutas por identidade, emancipação e supremacia do século XIX, a língua deixou de ser apenas um meio de comunicação, tornando-se o veículo do espírito coletivo. O Romantismo, especificamente, tentou validar as línguas nativas e os falares populares, desenvolvendo a afirmação de que a língua era um tipo de história e identidade cultural coletiva.

 

ALENCAR E A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Por sua importância como romancista, Alencar tem sido tomado como símbolo do pensamento romântico sobre a língua no Brasil. Na época em que o escritor fez sua formação intelectual, era forte o sentimento anti-português; era natural esse estado de espírito, já que nossa independência datava de tão pouco tempo.

José de Alencar nasceu em Mecejana, no Ceará, em 1º de maio de 1829. Seu pai teve evidência política e vigorosa participação na história do Império, deixando ao filho a herança do sentimento nativista e revolucionário. Em 1846, o jovem matricula-se na Faculdade de Direito de São Paulo, onde se formaria em 1850. Vai para o Rio de Janeiro trabalhar como advogado, iniciando-se no jornalismo em 1853, no Correio mercantil, onde escreve folhetins. Em 1856, é publicado, em folhetim, “Cinco Minutos”; em 1857, “A Viuvinha” e o romance “O Guarani”, que lhe trouxe a glória da consagração e a receptividade popular, elevando-o à posição de superioridade na nascente literatura brasileira da época.

Em 1860, é eleito deputado pelo Ceará, mas não deixa de produzir obras literárias: “Diva” (1864), “Iracema” e “As Minas de Prata” (1865). É festejado como escritor de talento. Em 1868, torna-se ministro da Justiça no gabinete conservador; dois anos depois, desiludido e amargurado, deixa o ministério, voltando à Câmara na oposição ao governo.

Desta data em diante, dá mais ênfase à literatura, publicando inúmeras obras de sucesso: “A Pata da Gazela”, “O Gaúcho” (1870), “O Tronco do Ipê” (1871), “Til”, “Sonhos d’Ouro” (1872), “Guerra dos Mascates” (1873), “O Sertanejo” e “Senhora” (1875). Continua colaborando no jornal O Globo. Em 1877, viaja à Europa para tratamento de saúde; de volta ao Brasil, vem a falecer em dezembro desse ano.

O sucesso e o reconhecimento do público não impediram que recebesse inúmeras críticas e sustentasse longas polêmicas a respeito da linguagem utilizada em suas obras, que continha elementos linguísticos brasileiros.

Em 1870, quando da segunda edição de “Iracema”, refuta no pós-escrito as críticas ao estilo, à linguagem e à concepção do livro, proferidas por Pinheiro Chagas e Antônio Henriques Leal. Dois anos antes, o escritor e crítico português Pinheiro Chagas fizera reparos à linguagem alencariana, ao mesmo tempo que estendia sua censura aos autores brasileiros, os quais apresentariam incorreções no Português referentes ao uso lusitano, bem como tentativas de criar uma língua “brasileira”, no dizer do crítico de além-mar, Pinheiro Chagas (1978):

O defeito que eu vejo em todos os livros brasileiros e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente a falta de correção  na  linguagem portuguesa,  ou Antes,  a  mania  de  tornar  o  brasileiro  uma  língua diferente do velho português por meio de neologismos arrojados  e  injustificáveis  e  de   insubordinações gramaticais. (PINHEIRO CHAGAS apud PIMENTEL PINTO, 1978, p. 73)

Alencar procurou justificar o seu uso recorrendo aos clássicos portugueses ou até mesmo ao Latim, ao mesmo tempo em que reclamava o direito a um estilo brasileiro. Segundo Pimentel Pinto (1978), o escritor faz alusão ao fato de que já existia no Brasil “a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas para a transformação do idioma de Portugal”.

Por ocasião da segunda edição de “Diva”, rebatendo a outras críticas Alencar fez observações sobre as mudanças na língua, que, segundo ele, devia acompanhar a evolução da sociedade:

Não obstante a força incontestável dos velhos hábitos,a língua rompe as cadeias que lhe querem impor, e vai se enriquecendo, já de novas palavras, já de outros modos diversos de locução. (ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1978, P. 75)

Entende Alencar que, sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve; defende o enriquecimento trazido pelas mudanças, bem como um meio-termo entre o radicalismo de inovações injustificáveis e o exagero do conservantismo intransigente.

Em 1873, começa a fase da efervescência crítica. O português José Feliciano de Castilho e Franklin Távora investem contra ele um ano inteiro na revista-panfleto Questões do Dia. Alencar defende-se em uma série de artigos, sob a forma de cartas a Joaquim Serra, reunidos em “O nosso cancioneiro”, de 1874. Em 1875, em O Globo, Joaquim Nabuco anuncia a série de estudos sobre a obra literária de Alencar; era o início da famosa polêmica entre os dois.

As polêmicas sustentadas por Alencar tinham como ponto essencial o uso brasileiro da língua portuguesa, o direito de incorporar em seus escritos certas peculiaridades desse uso, na tentativa de exprimir com mais fidelidade a sensibilidade e o caráter brasileiro; por isso, foi acusado de escrever numa língua incorreta. A seus críticos, responde Alencar:

Censurem, piquem ou calem-se, como lhes aprouver. Não  alcançarão  jamais  que  eu  escreva neste meu Brasil cousa que pareça vinda em conserva lá da outra banda, como a fruta que nos mandam em lata.(ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1978, p.95.)

Na realidade, a posição de Alencar não era no sentido de estabelecer as bases de uma língua brasileira, mas no da liberdade do artista em matéria linguística: envolvia a liberdade de estilo, como também a reivindicação de uma maior aproximação entre a língua literária e a língua falada. Atribuía ao escritor o papel de intermediário entre o uso popular e o consagrado. Valia-se dos modelos da língua, apoiava-se nos clássicos, na gramática e nos dicionários para legitimar usos pessoais. Destacou-se entre seus contemporâneos, independentemente de suas qualidades de romancista, pela tentativa de romper com os cânones portugueses, procurando valorizar o uso de sua época, exemplificando-o com o seu próprio.

Numa época em que tudo o que soava diferente de Portugal merecia censura, não resta dúvida de que Alencar revelou, em muitos momentos, tendência a uma maior liberdade dos padrões lexicais e gramaticais lusitanos, traduzindo com mais originalidade e espontaneidade expressões brasileiras e refletindo a busca de uma identidade linguística nacional. Seu nacionalismo traduz-se pela exaltação da natureza brasileira, pela valorização dos costumes e tradições locais, pela fidelidade na narração da vida social de sua época, mas sobretudo pelo uso de uma expressão linguística que exprime a identidade cultural de seu país. Nas palavras de Alencar:

O povo  que  chupa  o caju, a  manga,  o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e  o  mesmo  espírito  do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera? (ALENCAR apud PIMENTEL PINTO, 1979, p. 94)

 

A IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA EM “O TRONCO DO IPÊ”

Há que distinguir a posição teórica de Alencar em face do assunto e a atitude que assumiu nos seus romances. Por isso, é importante examinar o que o escritor fez em matéria de língua em seus escritos. O estudo da linguagem alencariana é decisivo para comprovar suas ideias.

Para tanto, foi escolhido o romance “O Tronco do Ipê”, escrito em 1871, em plena maturidade, num período da vida em que Alencar se encontrava desiludido com a política e no qual se dedicou exclusivamente à literatura. Desse texto foram extraídos alguns exemplos para comprovar o uso brasileiro presente na linguagem do autor.

Nesta obra, o romancista trata de aspectos da vida brasileira durante o Segundo Império; apresenta uma faceta da sociedade rural na década de 1850, quando a economia brasileira ainda se assentava em grande parte na força do braço escravo. Com a crescente urbanização, houve uma afluência para a cidade e o início do abandono de muitas fazendas. Toda a ação do romance se passa na fazenda de Nossa Senhora do Boqueirão, no interior fluminense, às margens do rio Paraíba, tão presente nos romances de Alencar.

Logo às primeiras linhas que abrem a obra em questão, as águas majestosas do Paraíba e o dorso alcantilado da Serra do Mar introduzem o leitor num cenário que lhe é familiar: o da natureza brasileira, exuberante e generosa, em meio à qual vive e trabalha o homem. A fazenda Nossa Senhora do Boqueirão o remete ao ambiente rural, enquanto a casa-grande, as senzalas e a Corte situam-no no tempo: século XIX, antes da abolição da escravatura, no Brasil do Segundo Império.

Algumas páginas adiante, três crianças acompanhadas de duas mucamas e um pajem brincam no jardim e no pomar da fazenda: sobem numa goiabeira, colhem pitangas e araçás, saboreiam jabuticabas, descansam à sombra de um jequitibá. Ao descrever esse cenário, Alencar situa-o num espaço determinado, o da natureza brasileira, por meio das escolhas lexicais realizadas: Paraíba, Serra do Mar, casa-grande, ipê, jequitibá, goiabeira, jabuticabas, entre outras. Ao mesmo tempo, mostra o homem integrado a essa paisagem, dentro do ideal do nacionalismo romântico, que procurava valorizar a natureza nativa e identificá-la ao ser humano.

Enquanto descreve o cenário e exalta as riquezas naturais, Alencar apresenta as pessoas que vivem nesse ambiente, esboçando alguns aspectos da vida da sociedade rural brasileira em meados do século XIX, relacionados por vezes com a vida na Corte. Procura realçar os costumes e tradições do país, no qual os escravos têm um papel importante: além de compor o painel da sociedade brasileira de então, são integrados a ela pelo ambiente doméstico a que estão ligados, sobretudo pelas crianças, com as quais mantêm laços afetivos. Trazem elementos culturais que se vão aos poucos incorporando à vida familiar e social; participam das festas tradicionais e assimilam a religiosidade dessa sociedade rural.

Dentro desse painel, alguns elementos lexicais ajudam a situá-lo no contexto de seu tempo: escravos, casa-grande, senzala, Corte, barão, mucamas, sinhazinha, nhonhô, entre outros. A língua em uso no Brasil, em muitos pontos diferentes dos padrões portugueses, teria forçosamente de expressar a visão de mundo, o modo de ser, a sensibilidade brasileira.

Também o ambiente, em meio à natureza nativa, onde estão as árvores, frutas e plantas da flora nacional, bem como as aves e outros animais da fauna brasileira, é designado sobretudo por vocábulos de origem tupi, por terem sido os indígenas os primeiros habitantes desta terra a nomearem esses elementos, desconhecidos dos europeus. Dentre os tupinismos presentes na obra, podemos destacar os vocábulos referentes à fauna: sabiá, juriti, anu, graúna, urubu, além de sagui e jacaré. Os referentes à flora designam árvores (ipê, jequiá, jequitibá), plantas silvestres (taioba, mandioca, sapé, cipó), frutas (araçá, goiaba, jabuticaba, cambucá, pitanga) e árvores frutíferas (goiabeira, jabuticabeira, cambucazeiro); há ainda nomes de objetos (cuia, arapuca), topônimos (carioca), quitutes (beijus, manuês) e o nome do rio, Paraíba.

O efeito decorrente do emprego do numeroso léxico de origem tupi é a possibilidade de caracterizar a natureza brasileira no que ela possui de mais típico e original e de situar o romance dentro dessa natureza. Curiosamente, os tupinismos empregados em “O Tronco do Ipê” fazem parte do léxico já assimilado popularmente, tendo até mesmo produzido derivados. Prova disso é que o autor não viu necessidade de explicar seu significado em notas de rodapé, o que revela o conhecimento generalizado desses vocábulos.

Pode-se observar também que grande parte do léxico presente na obra é constituído de termos de origem africana, como os que denotam afetividade e familiaridade: sinhá, nhanhã, Iaiá, sinhazinha, nhonhô, nhô, pela intimidade que os escravos gozavam na casa, sobretudo com os filhos de seus senhores. Além disso, os africanismos empregados referem-se sobretudo a funções domésticas (mucamas), qualificadores de pessoas (moleque, calunga), características pessoais (pixaim), objetos (miçangas), estados emocionais, sentimentos (cafifa, candongas, banzar, muxoxo), costumes (samba, jongo, batuque, mandinga), habitação (senzala).

Da mesma forma que os vocábulos de origem tupi, os africanismos são utilizados pelo autor fora do discurso direto, o que comprova já terem sido assimilados pela linguagem comum.

Deve-se destacar ainda o uso de brasileirismos semânticos, palavras com significado diferente de Portugal, como: faceira (elegante, graciosa, vaidosa), já obsoleta no uso lusitano; moço (rapaz, mancebo), em Portugal “criado, empregado; moça (jovem), em Portugal “rapariga”.

Além dos elementos léxicos relacionados, é necessário identificar as escolhas sintáticas realizadas por Alencar que caracterizam, de modo marcante, uma preferência pelo uso brasileiro. Destacam-se aí a colocação pronominal, o emprego do gerúndio em lugar da construção com a preposição a + infinitivo, as formas de tratamento e a troca de concordâncias da 2ª e 3ª pessoas, na linguagem coloquial, a redundância de negativas e outras construções específicas da oralidade brasileira.

É interessante ressaltar a extrema liberdade com que Alencar colocava os pronomes pessoais: ora seguia a norma portuguesa, ora o uso brasileiro, o que lhe valeu inúmeras críticas de seus contemporâneos. O uso brasileiro privilegia a próclise, inclusive no início do período na linguagem coloquial, bem como com o futuro do presente e do pretérito, e em uma locução verbal, com o pronome entre os dois verbos. Assim: Me deixe, Alice! (p.25); …a flor agreste, cheia de seiva, habituada a se embalar… (p.13). Este passeio já está me dando cuidado! (p.50). Você me corta uma folha de taioba? (p.103)

Tem sido considerado característicamente brasileiro o uso do gerúndio nas construções de sentido progressivo, como em: O pajem vinha se requebrando…(p.12). Mário seguiu comandando a fileira…(p.21). Alice subiu correndo os degraus da escada (p.82).

Aparece o emprego do termo coletivo a gente em lugar do nós, como marca da linguagem coloquial. Em geral usado pelos escravos, surge também no diálogo entre D. Alina e o conselheiro Lopes: Em todo caso a gente não se deve descuidar (p.112). Ainda: …quando a gente pensa que esta fazenda do Boqueirão… (p.37).

Registre-se aqui a troca das concordâncias de 2ª e 3ª pessoa – tu e você – já percebida por Alencar e empregada na obra na fala coloquial dos escravos: Olha, calunga, você ainda não viu o presente…(p.25). Reza, reza, nhanhã. Deus lhe há de pagar (p.25). Mas essa troca aparece também no diálogo entre as moças, Alice e Adélia: Queres um manuê? […] Queres vir, Adélia? […] Pois espere passeando no jardim, que eu já volto! (p.86)

A transcrição desse fato era uma temeridade na literatura de sua época. Alencar colocou-se em posição polêmica, mas consciente. Nisso revela um verdadeiro pioneirismo, na desmitificação do dialeto culto da época, controlado pelos puristas. O registro dessa mistura de concordâncias mostra que ela já existia na fala de seu tempo e está presente ainda hoje na linguagem coloquial.

É possível observar o cuidado de Alencar com o diálogo, no sentido de espelhar a língua falada viva e real de seu tempo. Nesse sentido, “O Tronco do Ipê” é muito rico quanto ao aproveitamento de recursos variados e espontâneos da oralidade. Assim, o diálogo alencariano se enriquece de estruturas próprias da linguagem oral e do vocabulário popular. O escritor criou um texto ajustado à realidade linguística e social de seu tempo, por meio das formas coloquiais e das escolhas gramaticais realizadas.

A língua empregada por Alencar na obra estudada revela uma tentativa de traduzir com originalidade e espontaneidade o uso brasileiro da língua portuguesa; reflete a consciência do escritor de seu papel de intermediário entre o uso popular e a língua literária; marca também o reconhecimento da identidade brasileira, com suas peculiaridades e diferenças culturais e linguísticas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 O século XIX, no Brasil, é marcado por dois fatores novos: a Independência política e o Romantismo. A Independência estimulou o ideal romântico do nacionalismo; o orgulho patriótico e o desejo de criar uma literatura nacional, expressa numa língua original e livre das imposições lusitanas, levaram à busca de modelos novos, voltados para os valores brasileiros. Os escritores dessa época intuíram a tarefa de construção cultural nacional, baseada no nacionalismo e na tentativa de buscar uma expressão brasileira autêntica, na afirmação do próprio contra o imposto, no caso, pelo colonizador.

A língua não poderia deixar de refletir essas aspirações. Alguns escritores procuraram fugir à imitação dos clássicos portugueses e exprimir uma realidade mais próxima, por meio de uma expressão que caracterizasse um modo de ser, de sentir, de pensar do brasileiro, diferente dos padrões lusitanos.

Dentre estes, José de Alencar destacou-se não só por suas qualidades de romancista, como por valorizar o uso brasileiro da língua e advogar maior liberdade de expressão linguística. Soube mesclar em seus romances certas peculiaridades do uso brasileiro, incorporando o léxico tupi e o africano, correntes no linguajar do povo, bem como traços da linguagem oral popular em seus diálogos.

Desde os primórdios da colonização, no século XVI, desenvolveu-se no Brasil uma sociedade mista em que conviviam portugueses, índios e negros, em constante interação. Do choque dessas três culturas produziram-se fenômenos de integração cultural e mestiçagem, com reflexos na língua. Sob esse enfoque histórico, examinaram-se algumas especificidades do uso brasileiro, que caracterizam a mudança linguística e o distanciamento do padrão lusitano. Ao refletir sobre o caráter histórico e social da língua, foram destacadas relações desta com o homem e a sociedade, sua importância como elemento unificador e identificador de uma comunidade social e, por conseguinte, essencial no processo de construção da nacionalidade.

O ideal do nacionalismo manifesta-se em José de Alencar na exaltação da natureza brasileira e na identificação e integração do homem a ela, bem como na valorização de nossos costumes e tradições. Este contexto é apresentado principalmente por meio de elementos linguísticos, léxicos e sintáticos, específicos do uso brasileiro.

Por seu talento e coragem, ao assumir a tarefa de refletir em seus escritos aspectos da língua em uso no Brasil em sua época, Alencar participou marcadamente da definição da identidade linguística brasileira e da identificação da brasilidade, representada na obra analisada por elementos linguísticos e culturais, sintetizados na imagem das folhas verdes e das flores amarelas do ipê.

 

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