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TRIBUTO A PLÍNIO MARCOS – 80 ANOS MARGINAIS

TRIBUTO A PLÍNIO MARCOS – 80 ANOS MARGINAIS

TRIBUTE TO PLÍNIO MARCOS – 80 MARGINALS YEARS

 

SERGIO MANOEL RODRIGUES

Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP
UNIBR-Faculdade de São Vicente-SP
semaronet@ig.com.br

RESUMO

Este artigo tem como objetivo traçar um breve histórico biográfico do dramaturgo Plínio Marcos, bem como descrever algumas particularidades de sua produção teatral. Como parte das homenagens prestadas ao referido autor por conta dos 80 anos que completaria neste ano, o presente estudo faz um tributo à dramaturgia pliniana, relatando alguns pontos que fizeram com que a mesma fosse considerada por muitos como marginal.

PALAVRAS-CHAVE: Plínio Marcos. Dramaturgia. Marginalidade.

ABSTRACT

This article aims to outline a brief biographical history of playwright Plínio Marcos, as well as describing some peculiarity of his theatrical production. As part of the tributes paid to the author on behalf of 80 years to complete this year, this study makes a tribute to pliniana dramaturgy reporting some points that have the same were regarded by many as marginal.

KEYWORDS: Plínio Marcos. Dramaturgy. Marginality.

INTRODUÇÃO

No teatro nacional, o nome de Plínio Marcos tem bastante relevância, pois graças a ele personagens marginalizadas passaram a participar da dramaturgia brasileira. Por meio de uma linguagem a qual agride aos mais conservadores, as peças teatrais de Plínio evidenciam também a forma como as personagens marginais se expressam, o que causou polêmica na época em que essas obras foram encenadas pela primeira vez; entretanto, de acordo com Contreras (2002), o espectador/leitor para compreender o universo de Plínio necessita despir-se da carga literária que traz consigo, dos preconceitos e do conservadorismo imposto pelas elites, para poder apreciar e se envolver com o mundo marginal recriado pelo dramaturgo.

Mesmo censurada e interditada pela ditadura militar brasileira, a produção teatral de Plínio Marcos lançou obras consagradas pelo público e pela crítica, tais como: Dois perdidos numa noite suja (1966), Navalha na carne (1967), O abajur lilás (1969) e A mancha roxa (1988)¹, que, assim como toda obra pliniana produzida entre as décadas de 1960 e 1980, não devem ser vistas como produções literárias arraigadas em um determinado tempo histórico; pelo contrário, seus textos ainda têm muito para ser revelado nos dias de hoje, pois as temáticas abordadas pelo dramaturgo permanecem bastante atuais, como se verá adiante.

Assim, expostas essas primeiras considerações acerca do teatro de Plínio Marcos, cabe elucidar que a proposta do presente artigo é homenagear o referido autor, traçando um breve histórico de sua vida e obra, haja vista que em setembro de 2015 Plínio completaria 80 anos de existência; e, em meio a tantos tributos prestados durante o corrente ano, nada mais justo do que esta homenagem como forma de apresentar Plínio Marcos e sua obra aos leitores desta revista.

DO MACUCO PARA OS PALCOS

Plínio Marcos de Barros, o figurinha difícil, como era conhecido, ou o palhaço, como gostava de ser apresentado, nasceu em 29 de setembro de 1935, em Santos/SP. Viveu parte de sua vida no Macuco, bairro santista, situado entre o centro comercial e a região portuária, onde se concentra a maioria dos armazéns, bares, cortiços, pensões e prostíbulos da cidade, principais locais que serviram de inspiração para suas tramas.

Diferentemente do que se diz, o dramaturgo não teve uma infância pobre ou era analfabeto; pertencia à classe média e estudou em escola particular, porém não gostava de frequentar as aulas, devido às punições que sofria dos professores pelo fato de ser canhoto. Exerceu várias profissões, tais como funileiro, camelô, jogador de futebol, bancário, ator, segurança e, enfim, autor teatral; no entanto, o mundo do circo fez dele um apaixonado pela vida artística: nesse ambiente mágico, conheceu uma de suas primeiras namoradas, porém como o pai dela só permitia namoro com pessoas de circo, Plínio resolveu seguir aqueles artistas circenses, iniciando sua carreira como palhaço, o que o levou a tomar gosto por ouvir e por contar histórias para o público (MENDES, 2009).

Como dramaturgo, cronista e jornalista em diversos jornais brasileiros, como Última hora, Folha de São Paulo, Pasquim, Jornal do povo, Jornal de Curitiba e Jornal da orla, Plínio relatou várias de suas experiências, vividas nas ruas, nos campos de futebol, no picadeiro. Suas tantas ocupações o colocaram diante dos mais variados tipos humanos, sobretudo daqueles que habitavam a beira do cais do porto e a zona do baixo meretrício da cidade de Santos.

Auto denominando-se “repórter de um tempo mau”, Plínio Marcos pariu e deu voz a uma formidável galeria de criaturas: ternas, líricas, truculentas, vadias, esperançosas, vitais em sua sobrevivência, seres mediatizados pelo real e pelo imaginário, lugar onde a ficção nasce, grande parte das vezes, como um grito de denúncia ou desejo de reconhecimento. (CONTRERAS, 2002, p. 10).

Além de essas personagens pertencerem ao submundo, são focalizadas a partir de uma realidade a qual revela as degradações humanas, tais como exclusão, atos violentos, condições de miséria ou consumo de drogas; portanto, há nas obras teatrais de Plínio Marcos uma forte crítica a questões sociais, seja ela dirigida ao contexto em que se encontram suas personagens, seja ao comportamento destas.

Ao se referir a tal dramaturgo, entretanto, não se pode esquecer de que foi considerado por muitos como um autor maldito, principalmente por apresentar em suas peças seres ficcionais marginalizados. Sua dramaturgia ainda causa estranhamento ou desconforto a muitos que a classificam, na maioria das vezes, como vulgar ou pornográfica, devido ao grande número de gírias e palavras de baixo calão nos textos.

O teatro agressivo, praticado, entre outros, também por Plínio Marcos, é uma das características e tendências da vanguarda que se inscreveu entre as décadas de cinquenta e setenta, tanto no Brasil quanto além e, […] violência e agressividade são dois traços distintos do teatro naquele longo período de vinte anos, em que parte dele vivemos sob o efeito da ditadura política. (VIEIRA, 1994, p. 40).

Nos anos em que produziu grande parte de sua dramaturgia, Plínio Marcos sentiu os reflexos do regime militar em toda a sua produção teatral: suas peças eram vetadas pela censura por serem consideradas indecentes e incitarem ao sexo e à violência, como justificavam os censores ao barrarem uma das produções do dramaturgo. Enquanto seu teatro amargava com as proibições da censura, Plínio arriscou-se em nova empreitada no ano 1968: tendo recebido convite de um dos diretores da TV Tupi, Cassiano Gabus Mendes, para participar como roteirista da telenovela Beto Rockfeller, alegou não saber escrever novelas, porém, aproveitando sua experiência como ator teatral, aceitou um dos papéis da trama, o mecânico Vitório, personagem que lhe rendeu um prêmio como ator revelação. Em seguida, atuou nas telenovelas João Juca Jr. e Bandeira 2, escrevendo também alguns roteiros para casos especiais; todavia, logo desistiu da carreira televisiva, pois sua paixão era, definitivamente, o teatro (MENDES, 2009).

À época, o cerco dos censores à obra de Plínio Marcos se fechava cada vez mais. Não somente suas peças foram impedidas de circular como também sua produção jornalística foi interrompida, sendo ele demitido dos vários jornais e revistas em que atuava. “Os censores [diziam]: ‘Plínio Marcos? Proibido’. A proibição tinha um objetivo mais cruel e restrito: impedi-lo de trabalhar”. (MENDES, 2009, p. 335). Começavam a piorar suas dificuldades financeiras, e a saída encontrada pelo autor santista foi a de vender suas peças, editadas em livros, pelas ruas e pela porta dos teatros. Eventualmente, recebia convites para fazer palestras em escolas ou outras instituições, mas naquele momento, era como camelô que Plínio garantia o sustento de sua família.

Na verdade, Plínio Marcos, a seu modo, expôs ao público, de forma nua e crua, uma realidade do Brasil que nem todos queriam enxergar. Por isso, é considerado um sucessor do dramaturgo Nelson Rodrigues² , conforme a crítica especializada e o próprio Nelson: a obra pliniana dialoga com a rodrigueana por questões de temática ou de semelhança de estilos. Para Contiero (2007), os dois dramaturgos têm uma visão pessimista da realidade humana, pois suas personagens sofrem demasiadamente graças às experiências de vida extremas e caóticas. Segundo Mendes (2009), Plínio inaugurou seu estilo dramatúrgico, concentrando a ação em poucas personagens, o que possibilitaria um enfoque maior no conflito e na eficiência do diálogo; suas peças se iniciam pelo conflito, determinando, assim, a ação e a autonomia do ser ficcional. Não é por acaso que Magaldi (2004), ao se referir ao teatro de Nelson Rodrigues, diz que, a partir da dramaturgia deste, proporcionou-se uma liberdade a todos os dramaturgos brasileiros e, portanto, todas as audácias seriam possíveis, como foi o caso da dramaturgia pliniana.

UM TEATRO MARGINAL

Depois de escrever suas primeiras peças teatrais, Barrela (1958) e Os fantoches (1960), obras que não renderam bilheteria nem fizeram muito sucesso na época, devido à censura que sofreram, Plínio Marcos dedicou-se a escrever Dois perdidos numa noite suja, baseado no conto O terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia. Nesse conto de Moravia (1985), o narrador e a personagem Lorusso são dois subempregados que pretendem realizar seus desejos: o primeiro almeja sapatos novos e o segundo, um pífaro; pois, assim, acreditam obter uma vida melhor. Decidem, portanto, assaltar os casais que frequentam o Villa Borghese, considerado um dos lugares mais ermos de Roma à noite, para conseguirem o que tanto desejam. Ao abordarem Gino e sua namorada em um dos jardins do parque, os dois se dizem policiais, mas logo a farsa é desfeita e o assalto é anunciado; no entanto, o lado sanguinário e a precipitação de Lorusso fazem com que este golpeie com o cabo de uma chave inglesa a cabeça de Gino, que cai desmaiado. Desesperados, os assaltantes fogem e, depois de dividirem os objetos furtados, voltam ao porão que alugavam para dormir. Ao verificar que os sapatos roubados de Gino não lhe cabem, o comparsa de Lorusso decide furtar os calçados deste, que, ao acordar, percebe a artimanha do companheiro. Eles travam uma violenta luta corporal, e, dessa forma, acordam os demais habitantes dali, os quais tentam apaziguar a briga. Por fim, os dois companheiros são encaminhados ao distrito policial, onde são reconhecidos como os golpistas do Villa Borghese, e acabam detidos pela acusação de roubo à mão armada e tentativa de homicídio.

A peça Dois perdidos seria, a princípio, um “teleteatro” para o programa TV de Vanguarda, da extinta TV Tupi, onde Plínio trabalhava como roteirista e ator. Intitulada de O terror, essa adaptação do texto de Moravia foi recusada pela direção do programa, que alegou morbidez da trama e crise na produção da TV de Vanguarda. Segundo Freire (2008), Plínio Marcos ficou muito impressionado com a trajetória dos dois meliantes do conto de Alberto Moravia e, mesmo depois da recusa de seu roteiro para a TV, o dramaturgo decidiu dar continuidade a seu projeto de escritura, transformando sua adaptação televisiva em uma peça de teatro.

O receio de ser censurado pela ditadura militar, no entanto, como ocorreu com suas obras anteriores, levou Plínio Marcos a alterar o título de sua peça de O terror para Dois perdidos numa noite suja, para que ela não fosse relacionada ao clima de terrorismo que se manifestava no Brasil, devido aos atentados e às guerrilhas entre grupos armados de esquerda e as organizações militares brasileiras (FREIRE, 2008).

Com o intuito de ganhar dinheiro para o sustento de sua família e por não encontrar algum grupo teatral interessado em encenar aquele texto, o próprio Plínio decidiu produzir Dois perdidos. Para isso, convidou o ator Ademir Rocha para contracenar com ele e seu amigo Benjamim Cattan para assinar a direção.

Dois perdidos numa noite suja, encenada pela primeira vez em um bar, no Centro de São Paulo, alcançou um inesperado sucesso de crítica. De acordo com VIEIRA (1994, p. 73), o crítico teatral “João Apolinário sustentou, entusiasticamente, que a peça é uma pequena obra-prima da dramaturgia brasileira […]”. O crítico (apud Vieira, 1994) ainda elogiou o dramaturgo pela construção das personagens Tonho e Paco, que beiram à margem da sociedade, e pela forma como se dá a tensa relação entre elas no decorrer da trama.

Outro especialista da área, Alberto D’Aversa, sobre a estreia de Dois perdidos numa noite suja, declarou que esta era “[…] sem dúvida a peça mais inquietante e viva destes últimos e anêmicos anos de teatro brasileiro”. (apud MENDES, 2009, p. 136); portanto, esse foi o texto teatral que projetou a carreira de Plínio Marcos como dramaturgo. Liberada pelos censores da época, a peça iniciou temporada em vários teatros, a começar pelo Teatro de Arena, em São Paulo, e, em seguida, Plínio autorizou a montagem de Dois perdidos no Rio de Janeiro, o que consolidou de vez sua dramaturgia.

No teatro, 1967 ficaria na história como o ano Plínio Marcos. “Foi ele, dentro de nosso teatro, um surto epidêmico. Alastrou-se por todos os palcos, elencos e plateias. Apanhava-se Plínio Marcos como, outrora, a febre amarela, a peste bubônica, a bexiga e a escarlatina”, constatou Nelson Rodrigues em artigo na revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Embora convivessem pouco, eles se conheceram e ficaram amigos logo depois da estreia de Dois perdidos no Rio. (MENDES, 2009, p. 157).

Assim como São Paulo, a capital carioca era – e ainda é – referência em relação às grandes produções teatrais. A partir das encenações de suas peças nas duas grandes capitais, os textos do autor santista passaram a ser requisitados por muitos grupos teatrais. Enfim, Plínio Marcos havia saía de vez do anonimato como dramaturgo, e suas personagens foram projetadas como indivíduos rancorosos e ressentidos daquele mundo que os isolava das possibilidades de uma vida social mais justa.

O enorme sucesso de seus textos e suas necessidades econômicas fizeram com que Plínio Marcos escrevesse bastante. Dentre suas renomadas peças teatrais, estava Navalha na carne, escrita em apenas três noites do ano de 1967 (MENDES, 2009). Composta por apenas um ato, essa peça de Plínio põe em evidência a prostituição, tema recorrente em toda sua produção teatral, cujo enredo trata da conflituosa relação entre o cafetão Vado, a prostituta Neusa Sueli e o homossexual Veludo (MARCOS, 2003).

A temática de Navalha despertou a atenção dos integrantes do grupo teatral União, os quais buscavam uma peça para encenar e, por intermédio do diretor Fauzi Arap, conheceram Plínio Marcos. Este apresentou o texto recém-escrito aos atores do União e convenceu-os a encenar Navalha na carne. Iniciados os primeiros ensaios da montagem, um decreto do Departamento da Polícia Federal censurava a peça em todo país, por considerá-la obscena, mórbida e, como descrevia a portaria de tal decreto, “[…] desprovida de mensagem construtiva, positiva e de sanções a impulsos ilegítimos, o que a torna inadequada à plateia de qualquer nível etário […]”. (MENDES, 2009, p. 160).

Organizou-se, então, uma grande campanha em defesa do texto de Plínio Marcos. Artistas e intelectuais mobilizaram-se e entraram na Justiça com recurso para solicitar a liberação da peça e exigir a presença das autoridades aos ensaios abertos, realizados no apartamento da atriz Cacilda Becker, a qual também aderiu à manifestação. De acordo com Contreras (2002), a comoção da classe teatral paulista a favor de Plínio teve efeito e marcou a carreira do dramaturgo. Finalmente, naquele mesmo ano, Navalha na carne foi liberada, porém com a classificação indicativa para maiores de 21 anos de idade.

A estreia de Navalha na carne nos palcos paulistas ocorreu no dia 11 de setembro de 1967 e obteve grande sucesso de público, apesar da linguagem pliniana, como já observado, ter causado (e ainda causa) o estranhamento dos espectadores presentes, como comprova a crítica de Sábato Magaldi ao jornal O Estado de São Paulo: “[…] grande ovação no final do espetáculo [e] aplausos em cena aberta, repetidas vezes, [como] uma descarga emocional para equilibrar o incômodo provocado por numerosos diálogos de violenta dramaticidade”. (apud MENDES, 2009, p. 169).

Tônia Carrero também se empenhou na campanha a favor da liberação de Navalha na carne. Interessada no papel da prostituta da peça, a atriz militou contra a censura a Plínio Marcos, por conseguinte, adquiriu os direitos do texto para encená-lo no Rio de Janeiro. Tônia, considerada uma artista glamorosa na época, enfrentou preconceitos por representar uma meretriz decadente, cujas falas eram repletas de palavras de baixo calão. Em entrevista concedida ao programa Jô Soares Onze e Meia, do Sistema Brasileiro de Televisão, em 1988, Plínio Marcos declarou:

A Navalha na carne que foi feita […] pela Tônia Carrero, essa mulher divina, que fazia […] contra tudo e contra todos. Porque com ela funcionou a censura contra ela e mais, o preconceito. Todo mundo falava assim: “Mulher bonita não pode fazer esse papel!” […] Ela foi lá, estraçalhou, deu um banho, arrebitou a boca do balão. Foi a primeira pessoa a arrebitar a boca do balão no Brasil. Foi ela com a Navalha na carne! (SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO, 1988, [s.p.]).

A personagem Neusa Sueli rendeu a Tônia Carrero uma reviravolta em seu trabalho como atriz de teatro, pois sua atuação, além de marcante, rompeu com o estigma de só interpretar mulheres belas e elegantes. Além disso, essa montagem de Navalha, cuja produção artística pertencia à própria Tônia, teve grande êxito. Na estreia, ao término da apresentação, como afirma MENDES (2009, p. 168): foi “[…] uma ovação. Ao contrário do que [se] previa, o público de Tônia se rendeu à sua interpretação, ao espetáculo e à peça”, resultado este que, a exemplo da encenação paulista, confirmou a grandiosidade de Navalha na carne.

Como dito anteriormente, durante sua carreira como dramaturgo, se por um lado, Plínio Marcos presenciou a movimentação favorável em torno de sua obra teatral e das diversas montagens de suas peças; por outro, testemunhou também a censura cada vez mais contundente a seus textos teatrais. Segundo Freire (2008), Plínio sofreu uma verdadeira interdição profissional, tornando-se um dos autores mais censurados pelo regime militar brasileiro. Tal reprimenda pode ser observada com a peça O abajur lilás, proibida oficialmente de ser encenada em todo o país durante uma década.

Em 1980, O abajur lilás foi finalmente liberada pelos censores; contudo, durante os anos em que a peça esteve interditada, Plínio Marcos se empenhou judicialmente para obter a liberação do texto, o qual estreou em 25 de junho daquele ano, no Teatro Municipal Castro Mendes de Campinas e, em seguida, cumpriu temporada no Teatro Aliança Francesa em São Paulo (MENDES, 2009). Novamente, uma peça de Plínio fazia sucesso: sob a direção de Fauzi Arap, a primeira encenação de O abajur recebeu críticas positivas na época, sendo comparada com peças anteriores do dramaturgo santista, como fez Sábato Magaldi ao declarar que, nessa peça, “[…] Plínio Marcos fundiu nela, mais do que em outras obras-primas, Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, talento e ira”. (MAGALDI apud MENDES, 2009, p. 286).

Assim sendo, considerado um marco da resistência contra a censura, esse texto de Plínio Marcos confirmava seu habilidoso trabalho dramatúrgico, sobretudo por abordar as tensas relações de repressão e, dessa forma, vista como uma descrição metafórica do poder ditatorial da época:

Na peça, cada uma das personagens femininas assumia uma posição diferente frente à truculência do dono do poder: Dilma era acomodada e se alienava dos problemas das outras por receio de represálias, Leninha era individualista e queria negociar, chegando à delação, e Célia era a “porra-louca” que não media consequências. Um abajur quebrado era o gancho para Giro e Osvaldo submeterem as mulheres a uma cruel sessão de tortura em busca do nome da culpada. (FREIRE, 2008, p. 175-176).

Nessa citação, Freire (2008) faz uma referência ao posicionamento que cada uma das personagens poderia adquirir diante àquele contexto histórico brasileiro: as mulheres seriam a representação das vítimas de tortura e dos subversivos; os homens, a dos ditadores e dos torturadores. Para reafirmar esse pensamento, Mendes (2009) justifica a possível causa da proibição desse texto teatral de Plínio: provavelmente, os censores associaram o autoritarismo das personagens opressoras da peça à brutalidade do governo militar.

É possível considerar o diálogo entre a trama de O abajur lilás e o momento político brasileiro, da época, por meio da analogia com a ressignificação que as artes proporcionam ao contexto nas quais se inserem. De acordo com Schollhammer (2009), muitas das manifestações artísticas surgidas nos anos da ditadura brasileira possuíam como um de seus principais interesses retratarem a violência, em uma atitude combativa à opressão e com fins políticos. Confirma-se a afirmação do estudioso (2009) com o seguinte depoimento da ex-esposa de Plínio Marcos, a atriz WALDEREZ DE BARROS :

Durante a universidade, me envolvi com política estudantil – fiz parte do CPC, o Centro Popular de Cultura da Filosofia. A gente organizava apresentações de teatro e música em sindicatos, fábricas, escolas… Enfim, a ideia era usar a arte como um veículo para fazer política. (apud STANDKE, 2013, p. 9).

Segundo a constatação da artista (apud STANDKE, 2013), sua experiência com política e teatro, ainda como estudante de Filosofia no início dos anos 1960, fez com que tivesse contato com uma arte formadora de opinião, expondo, engajadamente às camadas mais populares da sociedade, seus direitos civis e a revolta aos regimes antidemocráticos.

No tocante à obra pliniana, pode-se dizer que o engajamento político aparece no sentido de que nela existe “[uma] correlação entre temáticas como loucura e poder, feminismo e repressão, homossexualismo e violência, que [se] ousa colocar-se como política […]” (FAGUNDES PRODUÇÕES ARTÍSTICAS, 1980, p. 7), uma vez que as peças de Plínio evidenciam, nas correlações citadas, a cisão social entre opressores e oprimidos, como se pode observar em sua peça A mancha roxa, escrita depois do término do regime militarista, na seguinte fala de Professora: “[…] Eu, aqui dentro, estou sob tutela do Estado. O Estado é responsável por mim. […] Tem que me limpar e me devolver limpa pro convívio social. É isso. É obrigação do Estado”. (MARCOS, 2002, p. 21). Nessa passagem da peça, como uma espécie de crítica ao sistema penitenciário brasileiro, a personagem Professora (apelido este devido à profissão que exercia antes de ser detida e que a caracteriza como a mais esclarecida dentre aquelas presas) exige providências das autoridades, as quais nada fazem pelas detentas; evidencia, com isso, a opressão e a negligência às minorias. A Professora apresenta suas ideias às demais presidiárias, defendendo-as pelos direitos de cidadãs. Ao fazê-lo, age de forma política, haja vista que, segundo DALCASTAGNÉ (2008, p. 80), “[falar] por alguém é sempre um ato político, às vezes legítimo, frequentemente autoritário […]”. Assim, ao impor um discurso em favor dos interesses daquele grupo, a personagem mobiliza este contra as classes dominantes, de modo a querer se vingar de toda sociedade: “[…] Eles nos socaram aqui dentro. Por crimes que nos forçaram a praticar. Agora é a volta. […] Ficaram surdos, omissos ao nosso problema. Vão aprender pela desgraça”. (MARCOS, 2002, p. 23). Nessa fala, carregada de ódio e inconformismo, verfica-se a extrema oposição entre oprimidos e opressores, sendo estes representados principalmente pelos governantes, em uma alusão ao desacordo ideológico entre grupos políticos de esquerda e de direita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se, portanto, que, por meio de suas personagens e das relações estabelecidas com outros indivíduos, a dramaturgia de Plínio Marcos evidencia o convívio do homem frente ao caos social, em que são destacados problemas como violência, meretrício, desemprego, preconceitos, consumo de drogas. Ao abordar a imagem do ser humano, seus desejos e seus medos, a obra pliniana convida seu leitor/espectador a intervir de alguma maneira sobre a realidade massacrante dos menos favorecidos.

Assim sendo, ao denunciar as mazelas que assolam a sociedade contemporânea, a obra de Plínio se mantém atual; prova disso, são as últimas adaptações cinematográficas dos textos de Plínio e, até mesmo, as novas abordagens acerca da obra pliniana, como o evento Plínio Marcos – 80 anos de escrita maloqueira, ocorrida em abril deste ano em São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade, em que a própria denominação da mostra substitui escrita marginal por escrita maloqueira. Tais exemplos demonstram, portanto, o surgimento de novos olhares sobre o teatro e a literatura de Plínio Marcos nos dias de hoje.

A contemporaneidade de seus textos teatrais foi atestada pelo próprio Plínio em entrevista concedida ao programa de TV Jô Soares onze e meia, exibido em 1988, quando, de modo irreverente e crítico, ele se referiu à remontagem de Navalha na carne naquele ano: “[…] a peça ainda tem validade. Não por méritos da peça, é por culpa do país que não evolui nunca. Então, a peça fica valendo e, se continuar essa situação que tá aí, a peça vira um clássico”. (SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO, 1988, [s.p.]); entretanto, a atualidade na produção teatral pliniana atinge outros patamares, uma vez que não expõe apenas as problemáticas de uma realidade propriamente brasileira, mas sim universal: por isso, muitas peças teatrais do dramaturgo foram traduzidas e encenadas em outros países, como as recentes montagens de O abajur lilás, em 2012, pela companhia teatral A Escola da Noite, de Portugal, e de Dois perdidos numa noite suja, encenada pelo Teatro Brasileiro de Munique (Alemanha), em 2014.

Note-se, ainda, que nos últimos anos, a importância de Plínio Marcos no cenário cultural brasileiro pôde ser constatada nas inúmeras homenagens prestadas a ele, antes mesmo de sua morte, como a obtenção do título de Cidadão Emérito de sua cidade natal, Santos, em 1998. Homenagens estas mais do que justas, haja vista que a vida profissional de Plínio pode se relacionar à condição de suas personagens, devido à marginalização que sofreu, sobretudo a sua produção literária, pois, desde o período militar brasileiro, a incerteza em obter trabalhos ligados ao teatro e à literatura acarretou dificuldades em sua vida pessoal: conforme Mendes (2009), a partir da década de 80, para complementar suas finanças, Plínio Marcos passou a ministrar cursos sobre esoterismo e a exercer a função de tarólogo em seu próprio domicílio. Nesse mesmo tempo, passou a viver maritalmente com a jornalista Vera Artaxo, quem muito o auxiliou pessoal e profissionalmente, até que, no dia 19 de novembro de 1999, o dramaturgo faleceu, vítima de derrame cerebral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas de Rodapé

[1].Peças que serão comentadas no decorrer deste artigo; consideradas por mim como obras teatrais que representam e exemplificam contundentemente as características do teatro de Plínio Marcos.

[2] O teatro de Nelson Rodrigues foi responsável pela modernidade nas artes cênicas nacionais e questionava os costumes e o tradicionalismo da sociedade burguesa da época (entre as décadas de 1930 e 1940), abordando temas considerados tabus, tais como adultério, incesto e prostituição. (RODRIGUES, 2008).

[3] Em seu relacionamento com Plínio Marcos, com quem foi casada durante vinte e um anos, Walderez de Barros deu vida a muitas personagens criadas por seu ex-marido (STANDKE, 2013), inclusive, atuou na primeira encenação de O abajur lilás, na qual interpretou a prostituta Dilma.

[4] Citam-se como exemplos as mais recentes adaptações cinematográficas de Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, produzidas, respectivamente, nos anos 1997 e 2002. A primeira dirigida por Neville D’Almeida e o elenco protagonizado por Vera Fischer, Jorge Perugorria e Carlos Loffer; a segunda com direção de José Joffily e os atores Roberto Bomtempo e Débora Falabella nos papéis principais. (FREIRE, 2008).