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A HISTÓRIA E A EDUCAÇÃO EM SANTOS NA VISÃO DO PROFESSOR

A HISTÓRIA E A EDUCAÇÃO EM SANTOS NA VISÃO DO PROFESSOR NELSON SALASAR MARQUES: IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO

HISTORY AND EDUCATION IN SANTOS IN TEACHER VISION NELSON SALASAR MARQUES: ONE WORLD IMAGES SUBMERGED

 

Me.Danielle B. Lopes

Mestrado em Educação – UNISANTOS
Faculdade de São Vicente-UNIBR
teacherdanylopes@hotmail.com

RESUMO


O presente estudo tem por objetivo conhecer a vida e resgatar a obra do professor Nelson Salasar Marques para vislumbrar a história de Santos pelo seu olhar e, sobretudo, entender a maneira como ele observa o sistema educacional da cidade e, por conseguinte, no Brasil. A pesquisa é embasada na obra Imagens de Um Mundo Submerso, em seus quatro volumes, assim como em depoimentos de familiares e artigos de jornal. O autor prioriza alguns pontos para contar a história, tais como, o Bairro Chinês e seus portugueses, o Bairro do Macuco, os chalés, os bondes, os trens, os navios, os costumes da população do início e meados do século XX e estuda-se a visão de Nelson Salasar Marques sobre a educação na cidade e no país, suas críticas à educação tradicional e à defesa da Escola Nova; as sugestões para o enfrentamento dos problemas educacionais já existentes em sua vida docente, dando indicações de como essa situação atingiu tal ponto.

PALAVRAS-CHAVE:  Literatura. História e educaçãoem Santos. Memória.

 

ABSTRACT

This study aspires to know the life and ransom the Nelson Salasar Marques’ texts to appreciate Santos’ history through his vision and to understand how he observes the educational system of city and, above all, of Brazil. The research is based on Imagens de Um Mundo Submerso, in its four volumes, such as family testimony and newspapers articles. Our author takes priority to some points to talk the history, like Chinês district and its portugueses, the Macuco district, the typical houses, the street cars, the trains, the ships, the population’s costumes of start and middle of twenty century. I study Marques’ vision about the education in the city and in the country; such as his censorship to traditional education and defense to New School System; the suggestions to face of educational troubles that existed in his professional teacher life, giving indications of how this situation has reached such a point.

KEYWORDS: Literature. City’s history and education. Memory.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende estudar a obra memorialista do professor Nelson Salasar Marques (1930 – 2005) e, por ela, resgatar aspectos da educação e do cotidiano da vida urbana santista. Estudo histórico-literário da cidade de Santos por uma obra literária santista.

A obra estudada não é linear, nem cronológica, que prende a atenção do leitor por sua subjetividade. Este estudo tem relevância social por tentar revelar a presença de um professor que, por um lado, utilizou a literatura memorialista para mostrar a vida cotidiana do passado recente santista; por outro, seus escritos sobre a educação englobam propostas e discussões sobre as funções dos professores e alunos e a crise educacional.

Neste Artigo destacam-se a história e a educação em Santos por meio das memórias do professor referido. As lembranças da cidade e os desafios da educação são duas constantes em Imagens de um Mundo Submerso, em seus quatro volumes.

 

O HOMEM (07/07/1930 – 02/02/2005)

Nelson Salasar Marques nasceu em 1930 e morreu em 2 de fevereiro de 2005,em Balneário Camburiú, Santa Catarina; todavia, foi enterrado em Santos, onde viveu sempre. Contista, romancista, dramaturgo, tradutor e crítico literário, também fez reflexões sobre a educação brasileira. Como professor engajado na luta pela melhora na educação, dizia que esta era um fator preponderante para a melhora de vida das pessoas, e até mesmo para o crescimento de um país. Ele próprio superara suas dificuldades pela educação escolar. Filho de imigrantes portugueses, com uma vida humilde, deficiente físico, por meio da educação cresceu socialmente e culturalmente, formou-se professor, ganhou bolsas de estudo para o exterior, pôde conhecer outras culturas e educar seus filhos de uma maneira cuidadosa.

Na infância, Salasar residiu no Bairro Chinês, hoje, parte do Bairro do Valongo, sobre o qual relembra e escreve os fatos e situações. Bairro essencialmente português, apesar do nome, onde residiam trabalhadores da ferrovia. Morou ali até 1937, quando ele tinha sete anos. Seus relatos começam com suas memórias desde os três anos de idade. Falava dos costumes da época. Seu pai tinha uma imensa preocupação com a sobrevivência de Salasar, na fase adulta, em virtude de possuir um problema físico, consequência de paralisia infantil – Poliomielite – aos três anos de idade.

Apaixonado pela cidade, Salasar escreveu sobre a população e o crescimento dos seus bairros, contribuindo, dessa forma, para o conhecimento sobre a história de Santos. Escreveu muito sobre o Bairro Chinês, do início do século XX, hoje Bairro do Valongo, onde moravam portugueses e onde ele e sua família viveram. Mais tarde, com a vinda de nordestinos, esses portugueses mudaram-se dali. A maioria foi para o Bairro do Macuco. Este bairro, naquela época, englobava também o que são hoje os Bairros do Embaré e da Ponta da Praia.

A respeito da fase adulta, refere-se aos professores da época, de como as aulas continuavam fora da faculdade, inclusive enquanto esperavam o bonde para voltar para casa.

Durante a infância, passou por seis cirurgias corretivas, por causa do defeito na perna, causado pela poliomielite. Usou um aparelho ortopédico, feito de ferro fundido, muito pesado. Devido às limitações físicas, iniciou os estudos escolares aos 9 anos de idade, um pouco mais tarde que os outros garotos; no entanto, aprendeu a ler em casa com os pais e os três irmãos.

Salasar ingressou no Grupo Escolar Cidade de Santos. Foi premiado em um concurso de contos, por duas vezes, consecutivas. Com isso, não parou mais de escrever; escrevia sobre vários assuntos. Para tanto, a leitura foi também sua companheira constante, a partir da qual conheceu um mundo do qual as outras crianças de sua idade não compartilhavam. Fez o antigo ginásio no Colégio Canadá, mas o Grupo Escolar Cidade de Santos foi a sua paixão. Salasar ainda aprendeu línguas como o inglês e o francês. Foi um dos professores fundadores do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos (CCBEU), em Santos, onde trabalhou por 40 anos. Efetivou-se no setor público, também como professor, além de ter trabalhado em outras importantes escolas particulares santistas. Foi professor de francês da Petrobrás e bolsista na Alliance Française, de Paris, com aulas de linguísticas na Sorbonne. Foi graduado por universidades europeias: a Cambridge University e a Université de Nancy. Aprendeu francês fluentemente.  Leu Voltaire no original.

Aprendeu inglês falando com os marinheiros que circulavam pela cidade no Largo Monte Alegre, defronte da igreja do Valongo e no requintado Cabaret Chave de Ouro, onde buscava diálogo com marinheiros e comandantes de navios ingleses e americanos. Ali, punha seu inglês em dia, se equipava das gírias e expressões que corriam o mundo.

Foi um dos fundadores da Editora do Escritor, cujo dono é o escritor e crítico Benedicto Luz e Silva. Foi diretor da Revista da Academia Santista de Letras, onde também publicou alguns de seus textos. Escreveu durante 50 anos para o jornal A Tribuna, primeiro esporadicamente, depois quinzenalmente.

 

O  ESCRITOR

No lançamento da Revista da Academia Santista de Letras n° 4, em 06 de abril de2006, aDiretoria prestou-lhe uma homenagem, uma vez que a publicação estava no prelo, quando o professor Salasar faleceu. Em seu discurso, o acadêmico Amílcar Ferrão aludiu o diretor e organizador da revista, como um homem cuidadoso e competente. Para ele, Salasar possuía uma capacidade incomum de interpretar os fatos, identificando prontamente neles os aspectos mais importantes, os traços fundamentais. Em suas teses, fixava-se sempre no essencial, nos pontos principais dos fenômenos, fossem eles culturais, literários, políticos, sociais, econômicos, históricos, linguísticos, educacionais.

Amílcar Ferrão Pinto define Salasar como aquele que ousou ser ele mesmo, uma rara personalidade que, com a força imensurável de seu espírito, conquistou seu próprio destino. Realça que foi exclusivamente com os frutos de sua atividade de professor dedicado e intelectual íntegro que se manteve, proveu as necessidades do lar e constituiu família digníssima. Considera-o como aquele que produziu a mais bela criação literária sobre a história santista do século XX, Imagens de um Mundo Submerso, que conta a evolução de Santos nas últimas seis décadas. A partir de fatos históricos marcantes, o livro analisa as tendências éticas, morais, sociais, políticas, linguísticas e comportamentais da cidade.

 

A OBRA: IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO

Esta obra é dividida em quatro volumes. Iniciou-se em forma de crônicas no jornal “A Tribuna”, pela necessidade do autor de externar as lembranças de sua vida na cidade de Santos. Dessa forma, ao contar suas lembranças, acaba por contar a história da sociedade santista, com detalhes da vida cotidiana que não se encontra nos livros de história. Escreve conforme o encadeamento de suas recordações.

Segundo Benedicto Luz e Silva (1995 apud SALAZAR 1995), o primeiro volume resgata uma herança coletiva, imprimindo-lhe um sentido e uma finalidade ao que, de outra maneira, estaria condenada ao esquecimento. Percebe-se no escritor a intenção de realizar um painel da evolução da cidade de Santos em seus aspectos sociais, econômicos, culturais, linguísticos, políticos, por isso, as constantes referências a comidas, festas, cerimônias, enterros, hábitos, tendências linguísticas e expressões idiomáticas de épocas passadas, assim como o comportamento sexual, a religião e a gastronomia dos portugueses, por exemplo.

 

MEMÓRIA E HISTÓRIA

Ao escrever suas memórias da cidade de Santos, afloram lembranças com significados outros daqueles anteriormente vivenciados.  Exteriorizava as sensações que lhes causavam suas recordações; logo, escrevia apenas sobre suas experiências.

Tornada uma experiência subjetiva e individualizada, a lembrança dos fatos sociais inscritas como uma biografia é sempre fortemente carregada de sensibilidades, imbuída de afetos vividos.

Para o conhecimento da veracidade do autor, a crítica historiográfica orienta o uso da obra pela história e pela literatura, pois há uma relação entre essas duas vertentes: o historiador e o poeta; entretanto, tal obra literária documenta o passado histórico de Santos.

Peter Burke (1996) refere-se a esse tipo de história como “nova história”, escrita como uma reação deliberada contra o “paradigma” tradicional, no qual a história é essencialmente ligada à política e interessa-se por toda a atividade humana. A história tradicional, para Burke, oferece uma visão de cima; hoje, no entanto, vários historiadores preocupam-se com a “história vista de baixo”, com as opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social; todavia, sabe-se que o novo paradigma também tem seus problemas: problemas de definição, problemas de fontes, problemas de método, problemas de explicação.

Para Mori (1998) cada memória individual é um ponto de vista da memória coletiva, variando de acordo com o lugar social ocupado; esse lugar, por sua vez, transforma-se, em função das relações estabelecidas com outros meios sociais.

 

DESVENDANDO O TERRITÓRIO DA CIDADE

Em um dia qualquer de agosto de 1989, ao caminhar próximo à rodoviária de Santos, Salasar deparou-se com o antigo Bairro Chinês. Emocionado, decidiu escrever sobre o lugar. O redator-chefe do jornal A Tribuna, Carlos Klein, apreciou os textos e passou a publicá-los com o título de Imagens de Um Mundo Submerso; durante seis anos ininterruptos, a história de Santos foi descrita nas páginas do jornal A Tribuna. (MARQUES, 1995)

Em seu texto descreve a expansão do território santista, graças à política sanitária implementada pelo governo estadual; a expansão rumo à praia, com a modernização do porto para atender à economia cafeeira e à criação de canais de drenagem e de redes de esgoto; o incremento da circulação urbana, nos primeiros anos do século XX, e, especialmente, da abertura das Avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias. Ressalta o loteamento das extensas glebas nessa área, onde se formaram chácaras de veraneio com mansões que ostentavam o luxo e a riqueza, oriundos do café e do tráfego portuário. Apresenta os dados sobre o povoamento do município, até meados dos anos 30 do século XX, dos morros até as praias, com 60% de sua área urbanizada.

Segundo Gonçalves (1995), os espaços foram divididos ao arbítrio dos dominantes lenta e silenciosamente. Cada pedaço de solo em Santos teve redefinidas suas funções: o lazer nas praias, o comércio no centro, o transporte do café ao longo do estuário, as fábricas na direção da serra, estas no final da primeira metade do século XX. Salasar discorre fala sobre o antigo Bairro Chinês, hoje parte do Bairro do Valongo, no Centro Velho. No século XVII, segundo a historiadora Andrade (1989), o Valongo era habitado por pessoas abastadas, daí a escolha do local para a construção do convento franciscano. O autor, referido neste artigo, nunca soube o porquê daquele nome asiático; relembra, no entanto, que, na sua infância, morar no Bairro Chinês significava condição social mais elevada. Isso ocorria, porque, naquela época, os bairros eram muito centrados em si.

O nome era Chinês, mas a realidade era lusitana. Lá moravam os portugueses; com seus tamancos de madeira, suspensórios enormes e mulheres massudas. Durante a semana, depois do jantar, traziam para o passeio das ruas as cadeiras de casa. Assim, os homens lembravam de Portugal e as mulheres falavam de santos e igrejas e de graças alcançadas ou rezavam o terço e entoavam ladainhas chorosas.

Nas décadas de 1930 e 1940, de acordo com Salasar, as principais ruas santistas eram as ruas Visconde de Embaré e São Leopoldo, escoadouro único do Caminho do Mar, que descia de São Paulo e onde se concentravam os armazéns de café da cidade.

A Rua Visconde do Embaré era a grande passarela de Santos, por onde passavam os carros da moda, o King-Kong (ônibus da CGT com cara de besouro, que parecia ter dois andares, de uma cor de café com leite muito viva). Às sete horas da manhã, começavam a passar por essas vias as carretas de café que pareciam tanques de guerra, as rodas de ferro recobertas com camadas de borracha pulverizada, ficando o ferro cru em contato com o calçamento de pedra, e ninguém dormia mais.

A Rua Caiubi, no Bairro Chinês, era o centro nervoso daquele universo do café. Ali estavam os grandes armazéns de arquitetura inglesa, erguidos sobre tijolos vermelhos sem reboco e os portões trançados de ferro, através do qual se viam montanhas de sacos simetricamente arranjados, formando corredores fantasmagóricos.

Aos poucos, os brasileiros foram para o bairro Chinês. Vinham dos morros, de São Vicente, dos bananais e dos mangues de Cubatão; Assim sendo, os portugueses começaram a sair dali e rumaram para o Macuco, bairro essencialmente de trabalhadores do cais, como relatam Lanna (1996) e Brasil (2008).

A historiadora Andrade (1989) relata que os grupos mais abastados seguiam a velha tradição paulista de residir em chácaras (afastadas da cidade suja, poluída, da grande população e das doenças), até 1910. Mas, com a expansão urbana, foram morar em residências construídas na Vila Nova, e os mais pobres ocuparam bairros da Vila Mathias e Macuco.  Fundamental para esta expansão urbana foi a iniciativa oficial que permitiu a ocupação urbana dessa parte da ilha.

De acordo com Pestana (1990), citando José Ribeiro de Araújo, à medida que a população urbana crescia devido à ampliação do movimento portuário e comercial, novas áreas de residências foram se criando no entremeio das Vilas Matias (1880-1910) e Macuco (1890) e as zonas praianas; Vila Belmiro (1910-1915); Campo Grande (1915-1925); Vila Santista (1915-1925); Marapé (1930-1940); Ponta da Praia (1930-1950); Jabaquara (1920-1950). Os moradores mais velhos desta terra contam que, nas décadas de 30 e 40, pelo menos 30% da população santista moravam no Macuco. Não é difícil de acreditar que o tradicional bairro já foi um dos maiores da cidade. Estendia-se desde o Entreposto de Pesca, na Ponta da Praia, abrangendo áreas nas Avenidas Afonso Pena e Pedro Lessa, até o mercado Municipal. Com o desenvolvimento do município, perdeu áreas para outros bairros como Encruzilhada e Estuário.

O Macuco, com a aprovação do Plano Diretor de 1968, cedia áreas para os bairros do Estuário, da Ponta da Praia, Aparecida, do Embaré e Boqueirão, como relata Brasil (2008). A história do Macuco está ligada à tradicional família Macuco, possuidora de quase todas as terras que formaram o bairro. A antiga chácara da família começava na atual Rua Brás Cubas e seguia até a Rodrigues Alves. Este bairro iniciou-se entre a Rua Dona Luísa Macuco, a Avenida Conselheiro Nébias e o Estuário de Santos. Por morte do tenente Apolinário da Silva, marido de Dona Luísa Macuco, a chácara foi dividida mesmo antes da morte da viúva, dona de todas as terras da região, passando para mãos de terceiros; só ficou a parte de Dona Luísa, que era a mais próxima da cidade. Ela era filha de Francisco Manuel do Sacramento e de Manuela Urcesina da Silva (que detinham muitas terras na região).

O nome Macuco surgiu graças a um de seus mais ilustres habitantes, Francisco Manoel Sacramento, o qual gostava de caçar um pássaro preto de mesmo nome. O nome da ave incorporou-se ao nome de Francisco Manoel e batizou também a Vila Macuco. No Macuco, em 1937, os espaços eram cobertos pela areia. Pedro Lessa, Senador Dantas, Castro Alves, Benjamim Constant, Álvaro Alvim e todas as demais ruas até juntarem-se com a Avenida Afonso Pena. A areia cobria até os próprios trilhos do bonde. O areal imenso morria ao bater no muro de residências, que seguia a linha da praia até a altura da igreja do Embaré. Mas era uma muralha desfalcada de muitas casas, com grandes espaços que permitia ver o mar a uns dois quilômetros de distância.

Nesse deserto escaldante, surgiam de repente enormes manchas verdes que cobriam áreas imensas: eram as chácaras dos japoneses. Essas chácaras começavam na Avenida Conselheiro Nébias, atravessavam o Macuco e avançavam pelos canais 5 ao 7.

O Macuco da década de 30 foi absorvendo partes da cidade e tirando o poder daquelas famílias que detinham ruas inteiras de casas no centro que, do dia para a noite, foram perdendo o seu valor e se transformandoem cortiços. Asaída do português deteriorou o centro da cidade, que foi invadido por migrantes de diferentes estados brasileiros, sobretudo do Nordeste.

A lenta e gradual descaracterização do Macuco, para Salasar, veio com a saída dos japoneses, a eliminação de suas chácaras por causa da Segunda Guerra Mundial e o aparecimento das grandes várzeas, que foram se transformando em campos de futebol, mais de centenas deles. O surgimento do Grupo Escolar Cidade de Santos, construído pela Companhia Docas de Santos e cedido à Prefeitura, ali por volta de 1939 e 40, foi outra importante etapa nesta metamorfose. “O Grupo Escolar Cidade de Santos civilizou o Macuco” (MARQUES, 1995, p.27).

Depois veio o cine Santo Antônio e qual universalizou o Macuco aos demais bairros de Santos, tirando-o daquele isolamento dentro do qual crescera. Mais tarde, veio a Rua Castro Alves e suas mansões. Foi a primeira rua realmente elegante de Santos, cuja atmosfera exalava requinte e luxo. Esta trouxe a Rua São José e elitizou a área.

A palavra Macuco começou a incomodar, assim sendo,  essa área “elitizada” transformou-seem Embaré. O Macucocomeçou a encolher. Primeiro foi contido pela Avenida Pedro Lessa e depois, foi amarrado pelo grande corte transversal da Avenida Afonso Pena. Hoje, o Macuco está reduzido.

Segundo Salasar, ao contrário das cidades do interior, adormecidas no silêncio das grandes e vastas solidões, a imagem que a Santos das décadas de 1930 e 1940 passa é a de ebulição permanente. Apitos dos trens da Inglesa e dos grandes navios que entravam e saíam juntavam-se aos ruídos dilaceradores de tímpanos das rodas de ferro dos grandes carretões de café da Companhia União de Transportes; havia aquele intérmino barulho das ondas quebrando-se na areia.

 

OS COSTUMES

O Natal no Bairro Chinês era muito agitado. No final do ano, os portugueses ficavam frenéticos; durante dias a fio, carregavam garrafões de vinho e sacos de castanhas. Polvo, sardinhas, rojões de porco, bacalhau, leitões, cabritos, frangos, pernas de porco, perus, passas, figos, caixas de uva, maçãs, cerejas. Tudo o que se possa imaginar era estocado naquelas casas portuguesas, onde comer era uma religião.

Aqueles portugueses do Bairro Chinês punham em prática o mais perfeito tipo de comunismo de que se tem a notícia na história. O ideal utópico do pensador francês Gabriel Marcel era posto em prática por aqueles lusitanos: eram as residências coletivas; duas, três e, às vezes, até quatro famílias partilhavam da mesma casa com um espírito de harmonia total. Na casa de Salasar, eram três famílias. A cozinha era uma só e as atividades culinárias desenvolviam-se em horários rigidamente programados. Havia um só banheiro. Aquela amizade cimentada na convivência difícil do cotidiano foi amizade para o resto da vida: trinta, quarenta anos depois ainda se visitavam.

Muito da Idade Média se fazia presente na década de 1940, um exemplo disso eram as viúvas negras, mulheres novas e velhas que arrastavam pelo chão da cidade com aqueles enormes vestidos pretos, mostrando sua viuvez. Consumiam-se entre o trabalho duro e as lembranças do falecido. Marido morto era marido adorado, virava santo.

Fatalidade nem tragédia alguma abatiam a mulher portuguesa, porque ela havia sido criada na convivência diária da aceitação de sua sina. No dia seguinte à morte do marido, daquela mulher passiva e obediente, nascia uma guerreira. O tanque de lavar roupas era o seu campo de batalha e o seu altar de onde sairia o sustento dos filhos órfãos. Quem caminhasse pelas ruas do Macuco, nos fins de tarde, iria encontrá-las afundando os tamancos na areia fofa, vergada sob o pesado fardo da trouxa de roupa lavada que elas levavam às casas das patroas.

Santos era cidade “conversadeira”. Falar era necessidade premente. Conversava-se nos bondes, nos seus pontos de parada, ao redor das bancas de jornal. Depois das cinco da tarde iam todos para as calçadas em frente de suas casas e as conversas se esticavam. Mas as conversas eram limitadas, todas corriam para um mesmo ponto: a exaltação de Portugal e a consequente depreciação do Brasil. O Fado parecia ser a maior música que o mundo já havia visto. Perto de Portugal, o Brasil nem existia; porém, um acontecimento deu fim a muitos desses costumes: as novelas radiofônicas. Elas acabaram com as conversas nas calçadas e impuseram um padrão novo de comportamento. A mudança de hábito foi completa. Ao terminar a Hora do Brasil, todos se achegavam ao rádio em semicírculos ou se amontoavam pelo chão, as luzes eram apagadas e, por fora, as casas pareciam túmulos, as bocas se fechavam e os olhos se arregalavam. “A novela radiofônica impôs a todos a tirania do silêncio” (MARQUES, 1995, p.118).

Lanna (1996) conta que a presença da Igreja e a de uma vida religiosa marcaram, decisivamente, como em todas as cidades brasileiras do período colonial, a paisagem de Santos. O ambiente de Santos era encharcado de religiosidade a um grau inimaginável para uma pessoa de nossos dias. A figura do padre dominou até a década de 1940. Palavra de padre era palavra final. Ter filho padre era troféu valioso que se mostrava com orgulho: era a época das batinas. Missa tinha de ser matinal, em latim, com cantos gregorianos e coral afinado. As rezas tinham um grande apelo, eram a continuação das missas e eram sempre noturnas.

Mas as realidades do Embaré e do Macuco eram diferentes. A falta de um grande pregador sacro em suas igrejas, como havia no Valongo, minimizava as missas a uma simples sensação de dever cumprido. Mas, naquela vastidão territorial avultava um fenômeno singular: as procissões com cantos que lembravam os fados com aquela tristeza dos mouros vagando pela Península Ibérica.

 

O EDUCADOR

Como educador, Nelson Salasar Marques, tinha uma visão muito crítica a respeito da escola, da má formação de professores e, consequentemente, do que se tornaram os alunos. Em Novos Rumos da Educação Brasileira (1987), Salasar confronta o pensamento da Escola Tradicional e o da Nova Escola no Brasil, da qual era seguidor. Para ele, a Escola Tradicional foi uma escola deformadora.

Os professores tradicionalistas, para ele, continuam agindo como há muito tempo, ao invés de fazerem com que os alunos busquem as respostas por si só, dão a eles as respostas prontas, usando o mesmo material que se usava antigamente: lousa, giz e sua oratória; sendo que essas respostas prontas devem ser decoradas e devolvidas nas provas para a sua aprovação ou desaprovação. O aluno desmotivado recebe passiva e desinteressadamente grande massa de informações já prontas e muito acima de seu poder de absorção, deglute-as, sem digeri-las, e depois expõe tudo nas folhas das provas e dos exames, e sua nota será boa quanto mais suas respostas se aproximarem das fornecidas pelo professor, ou seja, sem a reflexão do aluno. (MARQUES, 1987).

Para Salasar, o golpe mortal foi dado com a criação da Universidade de São Paulo (1934), pelo que ela trouxe de fortalecimento do modelo francês e de escravização dos professores a um “teoricismo sufocante e estéril” que culminou com os modelos e teorias ensinadas até hoje nos cursos de Letras, teorias muito absurdas para um meio que, como ele diz, vai consolidar sua formação filosófica, ética e moral nas novelas da Rede Globo, sem a tradição de grandes leituras. Já a Escola Nova baseia-se em princípios bem simples e tão velhos quanto o Empirismo de Locke e o Pragmatismo de William James, lembra Salasar, e a sua filosofia é a de que se aprende a fazer, fazendo, e não apenas ouvindo; com iniciativa, originalidade e cooperação; educação como processo; aluno como centro; uso abundante de material didático, concreto.

Na Escola Tradicional, o aluno é parte passiva na elaboração da aula, percebe que está sendo inundado por toneladas de informações de segunda-mão, se desmotiva e cai, então, ou na bagunça ou numa postura de passividade extrema, únicas formas de protesto de que esses alunos dispõem numa sala de aula, reflete Salasar.

 

A EDUCAÇÃO EM SANTOS

Salasar fala de um fenômeno extraordinário para a Educação na década de 30: o surgimento das Histórias em Quadrinhos. Oaparecimento do Gibi Mensal. Nessas revistas em quadrinhos nasceu a maior revolução em termos de comunicação. A televisão, o computador, nada se compara em termos de convulsão e arrebatamento às aventuras em quadrinhos. As histórias em quadrinhos causaram um deslumbramento só comparável ao surgimento do rádio; entretanto o rádio era puro entretenimento auditivo. Romantizava o cotidiano banal das pessoas. Já o Gibi Mensal mexia com a cabeça da garotada, esticava ao máximo a sua capacidade de leitura. Aprender a ler passou a ser a maior ambição dos garotos do fim da década de 1930. Este gênero entrou na educação e passou a competir com a escola. Este venceu a escola e foi um fenômeno do qual os educadores não se deram conta. Os pais se inquietaram a princípio com esse novo fato, como recorda Salasar, porque não viam com bons olhos aquela leitura estranha que absorvia os filhos, então, muitas crianças passaram a lê-los às escondidas.

Até o início da década de 1940, já muitos pais haviam se rendido ao fascínio da leitura das revistasem quadrinhos. Poucosgarotos sabiam ler e essa carência tinha a sua explicação: as escolas públicas primárias eram raras em Santos até o final da década de 30. Havia os Grupos Cesário Bastos, o Lourdes Ortiz e o Barnabé.

O Gibi complementava os textos escolares em posição de vantagem, porque estes eram extremamente aborrecidos e vinham ancorados na filosofia do Estado Novo de Getúlio Vargas. Eram textos excessivamente retóricos e moralistas, dirigidos para modelar a cabeça do estudante, como recorda Salasar.

Quando, na década de1950, atelevisão surgiu, para Salasar, desintegrou em alguns anos todo um sistema ético-moral consolidado ao longo dos séculos. E nessa esteira de ebulição e reavaliação de valores cristalizados, surge a Faculdade de Filosofia, da atual UniSantos, com os seus cursos superiores que deram a Santos uma nova dimensão no campo da cultura. Lembra Salasar que até aquela década, os professores tinham outra linhagem. Eles se vestiam impecavelmente. As faculdades de Letras ainda não existiam, pelo menos aqui em Santos, de modo que eles ainda preservavam um alto grau de originalidade. Não haviam sido entupidos de fórmulas inúteis e esterilizadoras;  ensinar era processo totalizante. Podiam se espraiar sobre assuntos variados, porque tinham boa cultura. Abordavam escritores e filósofos antes de sua aula.

Nada mais gratificante para um professor do que se postar vis a vis a um auditório receptivo e interessado em suas palavras. Isto acende no professor todas aquelas potencialidades adormecidas e o desperta para o domínio de uma expressão oral mais aguçada. É nesse momento que o professor se transforma no grande ator, porque ele libera inconscientemente para o aluno parte do seu “eu” recôndito até ali cuidadosamente oculto. “E este exercício lúdico que faz do desempenho da profissão do magistério uma obra de arte. Ser professor é coisa de Deus”. (MARQUES, 1995, p.100).

Depois das aulas iam para o Bar Coimbra, ao lado da faculdade, muitos professores acompanhavam e muitas aulas continuavam naquelas mesinhas, regadas por um chope. Estudante de Direito tinha cultura, conversar ainda era um prazer e debater era uma necessidade premente.

No volume IV de Imagens de Um Mundo Submerso, Salasar faz um desabafo sobre a educação atual: diz que é triste ver a que ponto chegou a escola brasileira, principalmente a escola pública paulista onde educadores sem vivência alguma no campo da educação, educadores de gabinete, homens da USP, da UNICAMP, doutores que enfiam goela abaixo as teorias de muitos saxônicos, escandinavos e franceses de olhos azuis e cabelos loiros, homens que através de suas teorias impraticáveis e estrutura curricular inadequadas aplicadas nas escolas brasileiras, criaram uma escola aborrecida e estéril, condizente à falta de motivação e daí para a escola baderneira foi um passo.

O que funcionava lá naqueles países gelados, nunca funcionou aqui e o estrago que tais concepções deslocadas no tempo e no espaço ocasionaram foi devastador, reflete Salasar, mas embriagava as cabeças vazias daqueles educadores intoxicados pela conceituação pomposa cheia de teorias. Incapazes de proceder uma análise crítica do meio em que vivem, de mergulhar na raiz dos problemas, desvestidos daquele mínimo espírito nacionalista que deve funcionar de bússola à procura das soluções adequadas a essa realidade, partem então para as leituras pomposas em busca de fórmulas e com elas enchem livros e mais livros de asneiras, desabafa nosso autor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conhecer melhor a vida deste professor e escritor santista foi o objetivo deste trabalho. Reconhecê-lo pelo educador que foi, preocupado com a evolução cultural da sociedade, com o aprendizado escolar e engajado na luta para a melhoria educacional e, sobretudo, para criação de verdadeiros cidadãos.

Outro objetivo colocado foi estudar a questão educacional da cidade, sob o olhar de Nelson Salasar Marques, que como professor, tinha uma visão crítica sobre os problemas educacionais. Muitos de seus pensamentos merecem ser questionados, como por exemplo, quando ele fala dos modelos educacionais europeus cultivados em nosso país, sem que se pense se isso servirá para a nossa realidade. Apesar de tudo, Salasar coloca a educação como mola propulsora para a mudança de vida, pois isso aconteceu com ele próprio.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ARISTÓTELES. Sobre a memória e a reminiscência. Tradução por René Magner. Paris: Belles Lettres, 1965.

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