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MARCAS DA ORALIDADE EM DIÁLOGOS DO CONTO INTIMIDADE, DE DANIEL GALERA

MARCAS DA ORALIDADE EM DIÁLOGOS DO CONTO INTIMIDADE, DE DANIEL GALERA

SPEECH MARKS IN THE DIALOGS OF DANIEL GALERA´S SHORT STORY INTIMIDADE

Prof. Victor Matheus Victorino da Costa

Mestrando em Língua Portuguesa pela PUC-SP

E-mail: vic.tor.ino@hotmail.com

Resumo

Este artigo tem por tema a oralidade presente em um texto literário, mais especificamente o conto Intimidade, retirado da obra Dentes Guardados (2001), de Daniel Galera. Tem por objetivo analisar as representações da fala cotidiana nos diálogos dos personagens e, para tanto, utilizaremos como base teórica a Sociolinguística. De acordo com os estudos de Preti (1984; 2010) e Tannen (1987; 1996), observaremos as variações socioculturais, psicológicas e geográficas, detendo-nos nas gírias, expressões de baixo calão e contrações nas falas dos personagens. No percurso desta análise linguística pudemos concluir que, embora seja um texto de ficção, encontramos exemplos muitos próximos da linguagem falada num registro informal, variações geográficas comuns a diversas partes do país (principalmente na sul), e falas de homens e mulheres muito próximas, como tem ocorrido atualmente.

ABSTRACT

In this paper we focus on speech marks in a literary text, specifically in the short story Intimidade, published in the book Dentes Guardados (2001), written by Daniel Galera. We seek to analyze the representations of everyday speech in the characters’ dialogs, using the sociolinguistics theory. According to Preti (1984; 2010) and Tannen (1987; 1996) studies, we observe the sociocultural, psychological and geographical variations, fixing on slangs, coarse language and contractions in the characters’ speech. During this linguistic analysis we could conclude that, although the short story is a fiction text, we found examples close to language in informal talk, common geographical variations in Brazil (mainly in south), and very similar speeches of men and women, as have been lately.

INTRODUÇÃO

No presente trabalho serão analisadas as marcas da oralidade no conto Intimidade, de Daniel Galera. Este conto faz parte do livro Dentes Guardados, publicado originalmente em Porto Alegre, no ano de 2001. Ressaltamos que o corpus, por ser retirado de um texto literário, não configura uma transcrição de fala, mas representa a características da oralidade contemporânea.

Focalizaremos dois diálogos do personagem principal: o primeiro com sua namorada e o segundo com um colega. Principal atenção será dada a expressões e formas típicas da fala, comentando-se as mais comumente encontradas nas interações reais. Será feita, a princípio, a macroanálise e, posteriormente a microanálise do texto. Ao final, algumas conclusões serão apontadas.

2. VARIÁVEIS SOCIOCULTURAIS, PSICOLÓGICAS E GEOGRÁFICAS

Depreendemos, a partir de comentários do narrador e dos diálogos estabelecidos entre os personagens, poucos detalhes sobre as variáveis socioculturais e geográficas. Podemos entender que os personagens são jovens, universitários e de classe média alta, fazendo assim parte de um “grupo social”, como definido por Preti (cf. 2010, p. 160). Pela linguagem, todos moram numa capital, a qual não é mencionada na narrativa. Já a variável psicológica está mais delimitada no texto.

Os namorados têm uma relação íntima, e nesse contexto se desenvolve o primeiro diálogo: há um conflito iniciado pelo personagem principal, o qual se sente irritado pela namorada ter usado sua escova de dente. Assim, ele a questiona de forma rude, num registro totalmente informal, proveniente dessa intimidade. Linda a princípio se silencia, mas depois também se irrita porque para ela faz parte da intimidade existente no relacionamento entre namorados compartilhar objetos de uso pessoal. Há diferenças psicológicas, entre homens e mulheres, nas expectativas de comportamento do outro num relacionamento amoroso, como aponta Tannen (cf. 1987, 1996). Observamos que o ato de usar a escova era, para Linda, um ato de cumplicidade e, para o namorado, uma falta de higiene ou educação.

No diálogo com o ex-colega de escola, diferentemente, não há intimidade. É possível perceber que eles apenas estabelecem interação em locais públicos, como no bar. Dessa forma, o registro também é informal, pela própria situação de interação, mas psicologicamente eles compartilham informações mais gerais. É interessante notar a não disposição do personagem principal em prosseguir o diálogo: Beto pergunta sobre temas banais, típicos de quando se encontra um colega com o qual não se tem falado há algum tempo, e seu interlocutor não responde, ou responde de forma curta. Essas atitudes demonstram a falta de interesse, pois quando se quer estender a conversa, o falante explica com mais detalhes e também faz perguntas, incentivando a troca de turnos. Beto faz todas as perguntas, “puxando assunto”, como se diz, e por meio desses indícios, compreende que não há interesse por parte de seu colega, finalizando ele mesmo a interação.

3. ANÁLISE DAS MARCAS DA ORALIDADE NOS DIÁLOGOS

Inicialmente, destacamos o uso do pronome de tratamento tu, o qual se repete nos diálogos. É interessante notar que na região sul do Brasil, onde é ambientada a história, é muito comum esse uso. A peculiaridade do registro falado, como é bem retratada pelo autor, está no fato de o verbo não ser conjugado na pessoa tu (segunda pessoa do singular) e sim na terceira do singular (ele), mais identificado com você na oralidade corrente em muitas regiões. Assim, logo nas primeiras falas, temos “Tu andou usando […]” (l. 91), uso que demonstra essa tendência. Neste caso, o verbo andou seria conjugado, no padrão formal, para ele, e para tu seria conjugado andaste.

Podemos fazer algumas observações a respeito da recorrência desse uso na linguagem falada, destacando principalmente a “facilidade”, no momento da interação, de ativar os conhecimentos referentes às conjugações e pessoas verbais. Está claro que, na agilidade característica da fala, as pessoas optam por formas verbais mais comuns de se ouvir. Por um lado, “facilidade” pelo fato de exigir um conhecimento maior sobre as conjugações para que seja possível utilizar de maneira apropriada as conjugações de tu, por exemplo, as quais não são simples como as da terceira pessoa do singular: há maior variação, as terminações mais complexas. Na fala, andou (encurta-se ou em som de o fechado), tornou-se mais comum e fácil de recuperar na memória do que andaste (mais longo, menor encurtamento do som). Por outro lado, além da economia na pronúncia, devemos ressaltar a influência da comunidade na qual o falante está inserido sobre este. Caso a maioria significativa usasse a conjugação verbal de tu em diálogos corriqueiros, seria essa a forma mais recorrente. Assim como se pensarmos em outras regiões, onde se usa o pronome você, a conjugação da terceira pessoa do singular é a padrão. É possível ainda notar que a expressão usada pelo personagem (“Tu andou usando minha escova de dente?”) é típica da fala. Constantemente usa-se ‘andar fazendo algo’, com o sentido de ter feito algo, por exemplo ‘Tu tem usado… ’.

Esse uso destacado acima, o qual seja o pronome tu com o verbo conjugado na terceira pessoa do singular, pode ser encontrado em outras partes dos diálogos: “tu sabe” e “tu usou” (l. 92) e “tu tá” (l.153).

Há outras expressões da oralidade no decorrer dos diálogos, como citaremos a seguir. “Como é que é?” (l. 94), muito usado nas interações quando queremos mais explicações sobre algo que a outra pessoa acabou de dizer. “Sei lá” (l. 96) também é uma expressão típica da fala, para demonstrar a falta de explicação sobre algo, ou ainda falta de interesse. “Qual é a tua?” (l. 105), para questionar sobre a intenção do interlocutor. “como assim…” (l. 95) introduzindo uma pergunta. “Vamos no cinema” (l. 120), a regência verbal, na fala, é comumente trocada: em vez de ao, usa-se no.

Outra marca da oralidade são as contrações, as quais são muito presentes nos diálogos, mostrando em geral perda de vogais. Logo na primeira fala, encontramos: “dum” (l. 90), contração de de um; “pra” (l. 98-103), supressão do a de para; “tão” (l. 149), diminuição de estão; “Tou” (l. 149) em vez de estou; “né?” em vez de não é?; “tá” para está. Experimentamos na fala, de um modo geral no português do Brasil, as contrações. É recorrente diminuirmos os sons, independentemente do grau de escolaridade, idade, sexo ou região, em maior ou menor quantidade essas supressões estão presentes.

É importante notarmos a presença de expressões de baixo calão nos diálogos, característica bem marcadamente da linguagem dos jovens. Fazendo uma comparação, podemos perceber que há muitas gerações não era comum mulheres usarem expressões desse tipo, marcando mais a fala masculina. As mulheres tinham uma fala mais polida e “comportada”, dentro do que era o costume da comunidade de cada época, e os homens, em maior ou menor grau tinham uma fala mais “agressiva”. Dessa forma, ressaltamos nas falas aqui trabalhadas, características que representam a fala dos jovens nos fins dos anos 90 e início dos 2000 e, como um dos pontos mais significantes, a aproximação das falas de sujeitos de gêneros distintos.

Na primeira fala, masculina, encontramos a expressão “porra” (l. 90), muito usada ultimamente por falantes de diferentes idades. No entanto é expressivo seu uso por jovens, incluindo antes de algum elemento para enfatizá-lo, trocando-se por um substantivo ou ainda adjetivando algo, por exemplo. Na fala referida, o personagem usa porra para enfatizar seu descontentamento. Mais abaixo, a personagem feminina usa “droga”, demonstrando o uso de expressões de baixo calão também por mulheres. Notamos, porém, um peso menor na agressividade (porra é mais rude do que droga). Mais a frente a personagem usa uma palavra marcada (cf. Preti, 1984), “caralho” (l. 96), uma gíria originalmente de cunho sexual, mas nos dias de hoje também usada como uma interjeição, com diferentes conotações, dependendo da situação de comunicação. Neste caso, Linda está irritada pela insistência da pergunta do namorado. Algumas falas depois, o personagem usa “merda” (l. 103) para se referir à escova. Outro uso típico da fala informal, íntima, juntamente com os citados anteriormente. Usa-se merda quando se quer desqualificar algo, demonstrar irritação, por exemplo.

Ainda sobre a escolha do léxico, podemos destacar um caso interessante: um personagem, Beto, fala “ceva” (l.145) para cerveja. Esta é uma forma comum, encontrada entre jovens de diferentes décadas, ainda assim contemporâneos. Em São Paulo, nos dias de hoje, seria mais comum falar breja.

O uso das reticências é um recurso da linguagem escrita para indicar os silêncios dos personagens (ver l. 90 e 147). Essa falta de respostas mostra a não disposição do personagem para o diálogo. Frequentemente, quando um interlocutor não está disposto a prosseguir ou entrar na interlocução, ele deixa de responder ou faz gestos. No texto, podemos observar, no início, que Linda não quer responder ao questionamento do namorado, não entrando na discussão, enquanto ele reclama. Posteriormente, Beto tenta estabelecer um diálogo, mas seu amigo não está disposto, primeiro fazendo um gesto, levantando o copo, depois deixando no ar os comentários feitos (“Ah, ok. Mas vou tomar uma sozinho, então”, “Tou com saudade dela”), apenas respondendo brevemente (“Sim”, “jornalismo”) às perguntas diretas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações feitas anteriormente sobre os diálogos nos levam a algumas conclusões. Ressaltamos que, embora seja um corpus retirado de um texto literário e não uma fala gravada e transcrita e, ainda, não quantificada suas ocorrências, encontramos exemplos muitos próximos da linguagem falada.

De um ponto de vista social, há um grupo constituído nas interações: os três personagens fazem parte da mesma classe social, têm idades próximas e, aparentemente, o mesmo nível de escolaridade. Os diálogos são estabelecidos em situações cotidianas, fazendo com que o registro seja mais informal, tanto da interação com a namorada (embora mais íntimo) como com o colega.

Quanto às expressões típicas da oralidade destacadas na análise, podemos concluir que não são apenas de um grupo específico. Os falantes em geral usam essas expressões, formas contraídas, por exemplo. É mais característico da região Sul do país, como Porto Alegre, o emprego do pronome tu, marcando assim a variável geográfica (juntamente com o local de edição do livro). A questão da diferença de sexo foi uma constatação surpreendente: nos diálogos entre Linda e seu namorado, percebemos que os dois falavam palavras de baixo calão, por exemplo. Concluímos então que atualmente as falas de homens e mulheres estão muito próximas. Outros pontos poderiam ser levantados, mas os citados acima se mostraram mais significativos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GALERA, Daniel. Intimidade. In: Dentes Guardados. Porto Alegre: Livros do Mal, 2001. Edição digital [Kindle] disponível em: http://ranchocarne.org/#downloads, acessado em 5 de abril de 2014. Locations 88-163.

PRETI, Dino. A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.

PRETI, Dino. Inclusão e exclusão social pela linguagem: a gíria de grupo. In: Bentes, Anna Cristina; Leite, Marli Quadros (Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panoramas das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

TANNEN, Deborah. Gender and discourse. New York: Oxford University Press, 1996.

TANNEN, Deborah. That’s not what i meant!: how conversational style makes or breaks relationships. New York: Ballantine Books, 1987.